Quem visita Veneza
acaba, mais tarde ou mais cedo, por ficar com a sensação que se passeia por um
enorme museu ao ar livre ou, pior, por um parque temático igual aos que se vêm
por Las Vegas ou pela China. Por mais belo que seja, a sensação pode ser
deprimente e angustiante, principalmente para quem, como eu, abomina parques
temáticos porque, embora aprecie museus, gosta também de sentir o pulsar de uma
cidade viva e vivida pelos seus habitantes.
Por mais que nos
exaltemos com a beleza oriental da sua basílica ou com o rendilhado palácio dos
doges, percebemos que nem uma nem o outro cumprem já a função para que foram
construídos. Em São Marcos ainda se ouve cantar o Kirie e por vezes, um grupo de peregrinos, devotos do rito ortodoxo,
canta emocionados louvores à Virgem de Nikopoeia
roubada a Constantinopla, mas Byron já não pode declamar: "I stood in Venice on the Bridge of Sighs a palace and prison on
either side", porque tudo, basílica, palácio e prisão, não passam de
uma gigantesca sala de exposições, e é em paragens mais tropicais que os Casanovas distribuem seduções.
As gôndolas, que
outrora transportavam os seus habitantes, fazem a vez dos landaus de Viena mas,
ao contrário destes, a sua presença é de tal maneira obsessiva (e obrigatória)
que mais reforçam a imagem do parque temático. Ao contrário de Sevilha, onde as
carruagens de cavalos ainda passeiam velhas fidalgas andaluzas pelo parque de
Maria Luísa, em Veneza as gôndolas não transportam venezianos para além do gondoleiro.
De facto, Veneza parece
morta quando expõe a sua múmia magnífica aos olhares curiosos dos viajantes. Em
agonia desde que Vasco da Gama chegou à Índia, entrou em morte lenta no momento
em que Napoleão contemplou os cavalos da sua basílica. As ratazanas que cruzam,
à noite, as vielas escuras e estreitas, só aumentam a sensação de decrepitude e
nem as mulheres que estendem a roupa por cima dos canais, nem os funcionários
públicos que almoçam no Rialto conseguem dar à cidade uma aparência de
normalidade na mais anormal das cidades europeias.
Quando, tristes e
deprimidos ante as rugas desta velha senhora, deixamos cair a vista sobre um
bando de garotos que jogam à bola numa praça de Veneza voltamos a acreditar que
a cidade está viva. Pobre, sem poder, mas viva numa aparência de aldeia. A todo
o momento esperamos ouvir o conservador do museu gritar-lhes: silêncio! perante a heresia da alegria
saudável de um jogo de bola no meio de um enterro, mas a velha senhora ri das
cócegas que a bola faz na pele decrépita.
Jogar à bola em Veneza
não é tarefa fácil e requer pontaria redobrada. Para evitar os vitrais das mil e uma igrejas só têm que pontapear
baixo e raso ao solo, mas ninguém consegue evitar que uma defesa mais
desesperada corte a bola em direcção às águas do canal. Quanto isso acontece só
resta esperar pacientemente que um gondoleiro ou uma lancha moderna dêem uma
ajuda.
Disto não cuidou o
governo português e, na última apresentação da execução orçamental do Estado
verificou-se que a receita fiscal caiu e é inferior à que o governo esperava.
Pôs-se o governo, como os miúdos de Veneza, a jogar à bola com os nossos
ordenados e subsídios e não contou que mais tarde ou mais cedo a bola iria
parar à água. É que não há gôndola ou lancha que a tire de lá.
A rainha do Adriático
afunda-se, serena como a sereníssima república, numa morte de tragédia, digna e
nobre. E nós, que tivemos o senhorio do Atlântico? O que será preciso para que
escapemos ao nosso estrebuchar patético de náufrago que não aprendeu a nadar?
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