sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

DO DESLUMBRAMENTO




A primeira vez que vi um El Greco chorei.

Foi no palácio de Sternberg em Praga. Numa das salas, ao fundo, um pequeno quadro enchia o espaço ofuscando os Bruegel e outros de quem esqueci o nome. Não era o Salvador de Toledo, que nos fixa nos olhos, mas um Cristo jovem que olha com amargura o Céu. Anos mais tarde haveria de me embriagar em Toledo com o grego, mas ali, ainda inocente, chorei.

Como disse, em Toledo foi um inebriamento com Greco: se a modernidade do Enterro do Conde de Orgaz me fez pairar sobre o chão do átrio da igreja de São Tomé, o que direi daquela bandeira que cobre o corpo do martirizado e que inunda a sacristia da catedral com gritos de vermelho?

A inocência no entanto esvai-se e com ela a capacidade de deslumbramento. Perdida a inocência, ainda me deslumbro aqui e ali, no Prado, em Orsay, na espiritualidade de Bach ou sofrendo com Isolda.

São assim os meus deslumbramentos. Com as obras dos homens, não com os autores, que são fracos. Alguns, na sua fraqueza, produzem obras primas como a que nos deslumbra na sacristia da catedral de Toledo: o pintor, que com excessivo pudor beato criticava os nus de Miguel Ângelo, cegou-nos com aquele clarão escarlate da túnica sem costura de Cristo.

Por isso ainda me surpreende o caso dos ludibriados por Baptista Silva: ver homens adultos a quem a inocência há muito deveria ser palavra esquecida, que em vez das obras se deslumbram com as medalhas, as condecorações, os diplomas (merecidos ou comprados) e os cargos de qualquer luminária que se ponha em bicos de pé, como se fossem garantia da obra que nunca viram, é coisa que ainda me consegue espantar.

Ver as nossas elites beberem sofregamente as palavras de um qualquer Dulcamara (udite, udite, o rustici…), sem repararem que não diz mais do que o motorista do táxi que os trouxe, deve ser a causa da amargura naquele rosto de Cristo em Praga.

Que o deslumbramento do fogo de artifício do réveillon não vos cegue ao essencial da vida. Um bom ano.



segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

NÃO PERCEBO NADA DE ECONOMIA, MAS...



Amanhã é Natal e lá estão o burrinho e a vaca no presépio. Animais de carga e de trabalho. Lá estarão também os pastores e depois virão os sábios, homens de ciência, como eram os magos. Talvez que nunca na história o trabalho tenha sido tão dignificado como no presépio. É o cristianismo, muito antes das ideologias do século XIX, que vai elevar o trabalho à dignidade que hoje tem, muito por mérito da regra da ordem de São Bento, que eleva o trabalho e a leitura às melhores das actividades humanas. Trabalho e cultura.

Agentes da cultura fogem agora da França, sobrecarregados, coitados, pela carga fiscal. Afirmam eles que ganharam o dinheiro com a sua imagem e com o seu trabalho e que por isso não é justo tal carga. Zola, um dos grandes homens da cultura francesa, não fugiu, não se queixou: antes foi viver no meio dos mineiros, partilhou o seu viver e o seu trabalho. Depois escreveu uma obra prima.

Os mineiros produzem trabalho sob condições terríveis. Enriquecem os países e os proprietários das minas. Todos enriquecem menos os mineiros. Os estados, procurando maior justiça social, taxam com impostos os que enriquecem com os mineiros, mas taxam também os mineiros que não enriqueceram. Depois, os estados, lembrando-se da cultura, apostam fortemente, como o caso da França, no cinema, no teatro, etc. A cultura, fortemente subsidiada para que todos a ela possam ter acesso, permite que homens como Depardieu sejam conhecidos não só em França mas no mundo inteiro. Pode assim Depardieu cuidar da sua imagem e ganhar dinheiro com ela. Os mineiros, não.

Maior foi Cyrano, que Depardieu tão bem encarnou como personagem, e no entanto foi pouco mais que miserável. Não se subsidiava a cultura e os mineiros não faziam ideia quem era Cyrano para que pudesse cuidar da imagem. Este limitava-se a escrever no meio das batalhas, porque era soldado.

Se não houver dinheiro para subsidiar a cultura, não haverá consumidores de cultura e Depardieu não terá imagem para cuidar, pois os mineiros não saberão quem é. Vai a França então taxar quem? Os mineiros?

Dizem que a taxa é excessiva. Talvez. Mas mesmo assim Depardieu continuará rico e os mineiros pobres, e os impostos sempre ajudam a cuidar da sua imagem, por isso é investimento. Não vão os mineiros lembrar-se que há mais de duzentos anos a taxa para os ricos chegou aos 100%, vida incluída… essa sim, era excessiva.

Dirão que raio, na Noite de Natal, vir para aqui falar destas coisas, mas o que querem. Desde que soube pela TV que sou dono de um banco falido, fiquei assim!

UM BOM NATAL PARA TODOS.



sábado, 15 de dezembro de 2012

GUARDA O TEU IRMÃO


imagem do sítio da Câmara Municipal de Lisboa


           Quando Deus pergunta a Caim: -Onde está o teu irmão Abel?- e aquele responde - Não sei. Sou porventura guarda do meu irmão?- constatou o primeiro conflito social e político. Somos ou não guardas dos nossos irmãos?

            Implícito na pergunta de Deus está contudo a base da única teoria social e política que nos pode levar a bom porto. Só tem um teorema e uma regra:

O teorema de que toda a humanidade é uma fraternidade (qualquer estudo científico hoje o demonstra).

A regra de que, sendo todos irmãos, nos comportemos como tais, e que cada um seja guarda do seu irmão.

Deslumbrem-se os políticos com o luxo e o brilho da árvore de natal, mas que nenhum, de esquerda ou de direita, se abeire do presépio sem ter como lema este teorema e esta regra.


sábado, 8 de dezembro de 2012

DA AMIZADE E DO ENCANTAMENTO



Hoje, 8 de Dezembro, dia da Imaculada Conceição, padroeira de Portugal, faz anos que Francisco Aires de Figueiredo morreu na Quintã, freguesia de Cernache do Bonjardim, em 1681. O padre Francisco é meu parente remoto e personagem do meu livro Suite Beirã.

Dizia Pascal que evocamos o passado que nos foge, como para o deter. E hoje estou assim: evocando o dia de ontem porque dele não queria sair. É que na biblioteca municipal do Cadaval, aconteceu a apresentação do meu livro Suite Beirã que foi um momento de grande felicidade e é por isso que gostaria de o deter.

Ouviram-se palavras sensíveis e cheias de luz ditas pelo presidente Aristides, e a Drª Anabela Várzea teve a gentileza e a generosidade de apresentar o meu livro de uma forma que me comoveu e que despertou um entusiasmo na plateia como eu nunca tinha visto em eventos do género. A Drª Eugénia realçou, em palavras cheias de graça e sensibilidade, a amizade e os afectos, depois do grupo de jograis da central ter recitado palavras que tocaram fundo no coração.

Tudo isto abrilhantado pelo grupo musical jogralesca, que tocou magnificamente uma suite francesa e a triunfal marcha de Lully.

A casa estava cheia de amigos, a maior felicidade: tenho sempre mais do que mereço.
            Obrigado a todos