quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

NUM MOMENTO ASSIM...

Num momento assim, em que a Guarda Suíça passa o testemunho à Gendarmaria do Vaticano e as portas se cerram determinando a sede vacante, o que se pode escrever num blog de pequenas frivolidades? Não compreendemos a grandeza do gesto, o peso do símbolo, as consequências do acto. É assunto de católicos, dirão alguns, mas não. Não é!

O assunto diz respeito ao mundo católico mas também ao mundo ocidental. A Igreja tem dois mil e treze anos mas Lepanto foi só há quatrocentos e quarenta e dois anos. A ignorância e a desinformação (com mais estragos que a ignorância) é, em regra, perigosa.

Num momento assim apeteceu-me ouvir Ruy Belo:
 
Somos seres olhados
Quando os nossos braços ensaiarem um gesto
fora do dia-a-dia ou não seguirem
a marca deixada pelas rodas dos carros
ao longo da vereda marginada de choupos
na manhã inocente ou na complexa tarde
repetiremos para nós próprios
que somos seres olhados

 E haverá nos gestos que nos representam
a unidade de uma nota de violoncelo
E onde quer que estejamos será sempre um terraço
a meia altura
com os ao longe por muito tempo estudados
perfis do monte mário ou de qualquer outro monte
o melhor sítio para saber qualquer coisa da vida

 

Ruy Belo in “Aquele Grande rio Eufrates”

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

LIÇÕES DE CANTO

 
Durante um jantar em sua casa, Mr. Richard, o pai de Carlos e de Jenny, entre vapores etílicos e tabaqueiros, pede ao amigo, Mr. Brains, que cante. Este acede com gosto.
Passa-se isto no Porto do século XIX, em casa de um rico comerciante inglês ali instalado, como se lê nas páginas do romance de Júlio Diniz, “Uma família inglesa”, que eu tive a sorte de ser obrigado a ler por fazer parte do programa escolar. Júlio Diniz aproveita a deixa do inglês cantor para afirmar que a nossa nação é, de todas, a mais avessa ao canto. Acrescenta ainda que ninguém nos leva a palma à pouca disposição de nos ocuparmos de coisas sérias, o que aumenta mais a estranheza por aquela aversão.
Acontece que Júlio Diniz tem sido ultimamente desmentido. Não que tenhamos tomado o gosto pela ocupação de coisas sérias, mas por termos, de repente, ganhado maior gosto pelo canto.
Para o demonstrar é ver por onde andam os ministros do governo que logo escutaremos uma canção do Zeca. Sempre a mesma, desafinadinha, é certo, mas não se pode pedir muito à nação que tão recentemente tomou o gosto pelo canto: com tempo e insistência, afinaremos!
Não se fala por aí de outra coisa e este gosto repentino talvez seja mais uma prova do aquecimento global, não sei. Fico agora a aguardar que a outra afirmação de Júlio Diniz seja desmentida e passemos a ocupar-nos de coisas sérias.
Entretanto, talvez umas lições de canto…
 


domingo, 17 de fevereiro de 2013

A ESPERANÇA NUMA FOTO

 
 
Daniel Rodrigues, um jovem desempregado como tantos outros, ganhou, com a foto acima, um prémio. Do fotógrafo já muito se disse e, de caminho, falou-se da desgraça em nascer português.
Poucos, no entanto, falaram da foto. Que eu tivesse lido, ninguém. Não serei eu, que nem sapateiro sou para criticar a fivela das sandálias não expostas na obra prima (os miúdos jogam descalços), que falarei da foto, a não ser para relatar o que nela me encantou.
E o que me encantou nesta foto tirada num antigo quartel colonial português da Guiné-Bissau (Dulombi), foi o facto de um grupo de jovens, rapazes e raparigas, jogarem juntos à bola.
Numa zona ameaçada por grupos extremistas que pretendem impor a toda a África leis indignas da liberdade e dos direitos das mulheres, esta foto pode representar a esperança.
Parabéns aos miúdos e ao fotógrafo.


quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

TUDO A NU

 

Em quarta-feira de cinzas, logo à cabeça da quaresma, é costume iniciar-se um processo de abrandamento, reflexão e análise. Há quem lhe chame de purificação, com jejuns, banhos rituais, que isto de quaresmas, cada um toma a que quer. Eu, face à sanha inquisitória que renasce das cinzas por esta Europa fora, onde se perscruta a biografia e os curricula de todos e de cada um, e em especial neste cantinho poente, onde nunca houve carência de familiares do santo ofício, decidi publicar o meu curriculum vitae (assim em latim que é mais chic), em jeito de meditação, para aliviar o trabalho a quem tenha a incumbência de me investigar, no caso remoto de ser convidado a exercer algum cargo público, o que a acontecer só poderá significar que as trombetas do apocalipse ou já soaram ou estarão para soar.
 
Logo de muito novo demonstrei tendências para o deboche, e como fui sempre ligado às artes, dediquei-me à pintura de nus, de ambos os géneros, sobre papel e tampos de mesa. Um par de bofetadas dado a tempo salvou-me da desprezível profissão de artista.
 
Com estas tendências modernistas, não se espantem de logo aos sete anos integrar as legiões da direita fascista, aprendendo a cantar o hino “Lá vamos cantando e rindo” e a marcha “Minhas botas velhas, cardadas”, de braço estendido em saudação romana, coisa que fazia com grande vigor e galhardia. Esmorecido o vigor sob a canseira da ordem unida aos sábados de manhã, decidi abandonar as fileiras fascistas para me atirar nos braços da Santa Madre Igreja que era quem superintendia no corpo de escuteiros.
 
Passei então por uma fase de intolerância religiosa. Juntamente com outros gandulos como eu, corria atrás de um comerciante muçulmano, que não jogava com o baralho todo, chamando-o “monhé maluco”, tudo isto a distância razoável porque o muçulmano era maluco mas não era zarolho: nunca falhava uma pedrada bem apontada.
 
Da intolerância religiosa passei à intolerância sexual: Como a carreira da escola passava em frente a um pinhal, divertia-me, eu e mais um bando de tunantes, a insultar as pobres que ganhavam o pão à borda da estrada, só para as ver, em resposta, levantar as saias e pôr à mostra a “origem do mundo” para grande escândalo dos passageiros do autocarro e de Courbet, que só não nos acusava de plágio por já estar a prestar contas em outros tribunais. Se estavam à procura de provas de plágio, cá está: podem cantar vitória.
 
Com tanta falta de civismo é natural que não declarasse às finanças o dinheirinho que as titis me davam pelo Natal e pela Páscoa, roubasse a fruta dos pomares e tentasse o fabrico da marmelada, sem o cumprimento das regras, pugnando sempre pela diferenciação de género, falha grave em qualquer currículo, eu sei.

Em minha defesa, só posso declarar a falta de preconceito racial: a entrar na adolescência, e sempre sob a alçada protectora de Baden Powell, espreitava as moças banhando-se em pêlo após a lavagem da roupa; não nas serranias das Beiras, mas nas ribeiras a sul da linha do equador, entenda-se…!

Já mais nos eixos, isto é, mais a piscar o olho à esquerda, que isto do 25 de Abril foi para todos, aterrei em Coimbra para terminar o percurso académico. Copiei pouco, é verdade, mas mais por manifesta falta de jeito do que por pruridos éticos burgueses! Não fui nenhum Carlos da Maia, porque não tinha as posses deste, nem nenhum Menano por me faltarem dotes, mas peço aos inquisidores o favor de imaginarem tudo o que entenderem que um estudante pobre fazia em Coimbra à época, que eu desde já me confesso culpado de tudo, evitando assim ferir a sensibilidade de quem tenha a amabilidade de ler estas linhas.

Cumpri o serviço militar mas não posso dizer, como Proust, que tenha sido o feito militar que mais admire. Não matei ninguém, é certo, mas uma velha de uma aldeia de Mafra quase morreu de susto quando me viu, armado até aos dentes e de cara enfarruscada, aparecer-lhe à frente ao dobrar de uma esquina.

Depois da vida atribulada de estudante e militar, tive a desfaçatez de pedir uma mulher em casamento, solicitando os serviços de um jesuíta, ainda por cima, para a celebração do dito. Nada mais quadrado e pouco apropriado para alcandorar aos mais altos desígnios da nação.

Aqui ficam as zonas mais cinzentas do meu currículo (não tenho estatura para zonas negras) para poderem ser devidamente escrutinadas pelos moralistas e inquisidores deste país de doutores, que acham bem que uma mulher competente, cinquentenária, perca o lugar porque, com a inconsequente idade de vinte e quatro anos, numa tese, esqueceu-se de citar as fontes. Onde interessa mais o ter que o ser e, com a rapidez com que arde a cabeça de um fósforo, o transformaram de país de bacharéis em país de mestres, que para o serem não precisam, sequer, de plagiar teses, evitando-se a desonestidade e a obrigação de citar (ler…, que maçada)! Um país onde a maioria dos mestres em ciências físicas e sociais julga que Bacon é só aquela tira gordurosa que se come com ovos, e onde quase todos os políticos já aprenderam que Chopin não escreveu concertos para violino mas ainda não sabem que o Strauss da Salomé não tocava valsas para a Sissi.

Acrescento que continuo a gostar de touradas, atravesso quase sempre fora da passadeira, e ainda penso que aquele sinal circular vermelho e branco com um número dentro, que se vê na AE, é a medida do peito da portageira.

Pronto: julgo que não me esqueci de nada que pudesse interessar às boas consciências. Peço desculpa por não ter o picante do catálogo de D. João, para grande desgosto vosso e meu, que nunca visitei a Alemanha ou a Turquia, e não vou as vezes suficientes a Espanha para atingir a beleza numérica das mil e três.

Julgo que as possibilidades de ser convidado para uma sinecura ministerial, ou eleito em conclave, ficaram reduzidas a cinzas, como o carnaval nesta quarta-feira, mas fiquei de alma lavada, embora não me arrependa de quase nada. Posso agora iniciar a quaresma em paz!
 



quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

PELA BRISA DA TARDE...

 

Que tardes aquelas quando soprava a brisa fresca que acalmava o ardor do estio! Nela viajava o odor das laranjas que amadureciam no pomar, e dos pêssegos, e dos ananases…e o Senhor, que passeava no jardim do Éden, fechava os olhos e aspirava, embevecido, deixando que a hera se encaracolasse nos cabelos e o loureiro lhe coroasse a fronte, enquanto a abelha, de estômago cheio do néctar das figueiras, vinha aprender no doce dos seus lábios o fabrico do mel. Então o Senhor, com um gesto largo da divina mão, mansamente a afastava e retomava o passeio.
 
Ao longe, sob a cúpula das glicínias assente nas colunas de ciprestes, templo monóptero de jardim, ouviam-se os anjos tocar, ritmando o passeio. O homem e a mulher “Ouviram, então, a voz do Senhor Deus, que percorria o jardim pela brisa da tarde…(Gn 3,8). Ouviram o Senhor que afinava o rouxinol enquanto desistia da cigarra que, receando desafinar, ronquilhava a mesma estridência sem cessar. Por isso lhe escutaram a voz, se assustaram e se esconderam. E o Senhor, que passeava pela brisa da tarde, franziu o nariz ao cheiro daquele medo.
 
Desde então, desde que o cheiro do medo inundou a brisa que corria no jardim, o homem e a mulher não cessam de tentar recriar a harmonia dos anjos, na esperança que o Senhor volte a passear… pela brisa da tarde.