quinta-feira, 30 de maio de 2013

ADOPÇÕES (que se lixe o AO)

 

O herói Siegfried foi criado por Mime, o nibelungo ferreiro, e o rei Artur foi criado por Merlin, o mágico celta, nenhum conhecendo pai e mãe. Eu, que tive, e tenho, pai e mãe, e sou apaixonado por aqueles heróis míticos, tive durante os primeiros anos da minha vida um criado cuja única função era trazer-me ao colo, brincar e manter-me distraído, libertando a minha mãe para as tarefas da casa. Era um garoto negro a quem chamava Noni.

Diz a minha mãe, porque não me lembro, que quando chorava e me sentia perdido, era pelo Noni que eu chamava. O Noni foi-me tirado antes da idade da memória e eu fui tirado a um Noni quase adolescente. Terá recuperado da perda?

Lembrei-me do Noni no meio desta confusão de um pai ou de uma mãe, de dois pais e duas mães, ou, o pior de tudo, de nenhum pai e nenhuma mãe.

Se ao menos tivessem um Noni…



segunda-feira, 20 de maio de 2013

A SENHORA DE FÁTIMA E A CONSTITUIÇÃO


 
 
O homem é um animal racional que perde sempre a cabeça quando é chamado a agir pelos ditames da razão.
Oscar Wilde

A melhor forma de destruir toda a argumentação do adversário é inventar um insulto, generalizá-lo e mostrá-lo de forma tão odiosa que seja aceite pela maioria. Depois é só atribuir esse insulto a qualquer um que apresente uma argumentação contrária. Como ninguém quer que tal insulto lhe seja atribuído, ficam reféns do mesmo, inibindo-se de expressar o seu pensamento e opinião, ao ponto de dizer o contrário do que verdadeiramente pensam. É de tal ordem o sucesso que mesmo aqueles a quem o insulto podia ser atribuído o usam consciente ou inconscientemente. Foi assim com o apodo de comunista no anterior regime, e o de fascista no actual. Porque o assunto está na agenda, o insulto da moda é: homofóbico; de tal modo eficaz que o próprio Gore Vidal, um homossexual assumido e famoso, seria facilmente apelidado com tão feio insulto, quando disse que o assunto do casamento gay lhe dava sono.
          Por alturas do 13 de Maio, Cavaco Silva, um católico assumido, falou em inspiração de Nossa Senhora de Fátima, na melhor tradição dos chefes de estado portugueses, desde o fundador de Portugal que lhe atribuiu o nome de “Terra de Santa Maria”, quando em Lamego fundou o reino, passando por D. João IV que nomeou Nossa Senhora padroeira de Portugal e a coroou rainha deste pobre país. Caiu o Carmo e a Trindade e os próprios católicos fizeram coro contra Cavaco, mesmo aqueles que vão a pé a Fátima pedir qualquer graça, que não a graça que falta ao Presidente. O homem não tem piada, já todos percebemos, e também perdeu autoridade, mas tem todo o direito de expressar a sua crença sem que pareça diminuído intelectualmente, quanto mais não seja por respeito à tradição de um povo e do fundador do Estado.
As virgens ofendidas, na impossibilidade de exilarem a Senhora que se apresenta como rainha de Portugal, em clara violação da Constituição, agarraram-se à laicidade do estado argumentando que o Presidente tem de calar a sua fé. Subjacente está a teoria que vai minando toda a sociedade: a de que ter fé numa crença religiosa só pode ser fruto de alguma anomalia psíquica, ignorância ou falta de espírito racional. Da teoria ao insulto já quase não falta nada, e já poucos se atrevem a afirmá-lo em público, porque as “taras” querem-se privadas.
O Presidente tem de ter uma atitude racional, gritam, como se Platão, Agostinho, Tomás de Aquino ou Espinosa não tivessem sido racionais. Como se Dali tivesse as suas capacidades intelectuais diminuídas quando pintou o Cristo de São João da Cruz e afirmasse que o mesmo correspondia às suas próprias visões. O risco de ser-se considerado intelectualmente diminuído faz com que cada vez mais crentes se abstenham de falar da sua fé e da crença na manifestação do Divino. Quando se vai a Fátima é porque se acredita na intervenção da Senhora que dizem lá ter aparecido: afirmá-lo não pode ser surpresa para ninguém e muito menos considerado pouco racional. E isto vale para o dono da mercearia como para o Presidente da República, sob risco de a Constituição ter de proibir o Presidente de comungar e participar na missa em público.
Manifestar a crença na intervenção de entidades sobrenaturais é assim interdito a quem ocupa cargos públicos, num país onde a Constituição possui como dogma irrevogável, a forma de governo republicano e a independência e unidade nacionais, como se fosse heresia dizer o contrário do que um grupo de homens decidiu escrever em forma de Lei. A Constituição passa assim a ter valor de dogma religioso, num país que se quer laico. A crença que a nação se esgota num estado independente é historicamente errada e a Constituição se quer defender a Nação tem de acarinhar os seus elementos fundadores e formadores, que passam necessariamente pelo epíteto de Terra de Santa Maria, padroeira e rainha de Portugal, sob risco de ficar sem o que se denomina de Nação.
O Presidente Obama, o ícone da esquerda europeia, seguindo a tradição deixada por Washington, jurou fidelidade à Nação com a mão sobre a Bíblia, dizendo: So help me God. Ora nada disto é obrigatório e já houve presidentes que recusaram a Bíblia e a frase não está no texto legal. Portanto, das duas uma: ou Obama acredita na intervenção divina para o ajudar na condução do estado americano, ou mentiu, o que não seria muito recomendável para início de um mandato. Porque raio não pode Cavaco dizer que houve mãozinha da Senhora de Fátima? Se foi para ser engraçado, não teve graça nenhuma. Se foi a sério, estava no seu direito e não devia ser motivo nem de chacota nem de coros de tragédia grega, e muito menos de atestados de menoridade intelectual.
Na Holanda acabam de fazer rei a um homem, numa cerimónia religiosa dentro de um templo cristão. Os japoneses acreditam que o seu imperador, líder máximo da religião xintoísta, é descendente de Amaterasu, a deusa do Sol e do Universo. Quando foi entronizado passou a noite sozinho num templo, na esperança de uma cópula divina, deixando a Nação feliz e contente, porque o seu imperador se amancebava com deusas. Os Islandeses, quando constroem estradas, utilizam o serviço de pessoas que têm a capacidade de negociar com duendes de forma a encontrarem a melhor solução para o traçado de um caminho que não belisque a morada destas entidades simpáticas mas buliçosas, acreditando ser possível um consenso entre duendes e engenheiros. Ser racional é saber que são as emoções que nos comandam. Foi pela emoção de voar que aprendemos a construir aviões, imitando os pássaros.  
Nestes tempos de crise, é pela emoção de acreditarmos que somos Nação protegida pelos milagres de Nossa Senhora que obedecemos à constituição: pela razão já teríamos mandado a independência nacional às malvas e chamado de novo o conde de Lippe, não só para organizar o exército, mas também as finanças e pôr um fim às rendas da energia, já que os políticos da terra não o conseguem nem podem pedir ajuda divina como Afonso fazia erguendo as mãos aos céus, quando largava delas a espada para lhe arrefecer a lâmina, não fosse destemperar-se o aço.
A Islândia, a Holanda, o Japão e os EUA têm um índice de literacia de 99 %. Em Portugal este índice é de 95.2%. Que a rainha de Portugal nos ilumine e ajude a chegar aos 4.8% que faltam, porque depois talvez consigamos fazer o resto.


quarta-feira, 15 de maio de 2013

OU MONTAS OU FICAS APEADO


O CAVALO DA HISTÓRIA

Peça em 1 acto e dois quadros.


No Largo do Rato
 
- O que disseste sobre as pensões Tózé?
- Admiti levar o caso ao Tribunal Constitucional.
- Admitiste? Porque não afirmaste? Parece aquela vez em que te abstiveste violentamente…
- Zorrinho, que é isto que oiço? Deixaste o cavalo à solta?
- Não oiço nada Tózé.
- Mas oiço o galopar de um cavalo.
- És capaz de ter razão. Também me pareceu ouvir algo.
- Se for um bom cavalo talvez fosse melhor montá-lo. Que dizes?
- Digo que tens razão. Prepara-te.
- Mas não achas melhor pensarmos primeiro se devemos ou não levar isto ao TC.
- Isto o quê?
- Isto das pensões.
- Olha o cavalo!
- Que lindo. Correu pela avenida abaixo!

Mais abaixo na avenida, no antigo hotel Victória
 - Já vos disse estamos em condições de assumir todas as responsabilidades governativas.
- O camarada Jerónimo não se está a precipitar a dizer isso para os jornais?
- Qual precipitar, qual quê. (vê o cavalo) Olha que lindo cavalo!
- Camarada Jerónimo, e fazemos o quê com o cavalo?
- Primeiro montamos, depois logo se vê! Eta cavalinho lindo.
- Que bem que o camarada monta.
CAI O PANO
 
MORAL DA HISTÓRIA

 «Os grandes estadistas são capazes de ouvir ao longe o galope do cavalo da História e montar nele quando passa.»

Bismarck

quarta-feira, 8 de maio de 2013

OS EXAMES DA SEMANA

 
 
 
          O exame de português do 4º ano foi um encantamento. Os miúdos, entre o ranho limpo à manga da camisa e a emoção de estarem na escola dos grandes, assinaram atestados de honra que nem políticos em campanha eleitoral. Estão uns homenzinhos e umas mulherzinhas os nossos miúdos, a ler Hans Christian Andersen e a história da sereiazinha em águas azuis como as pétalas de uma centáurea, e artigos científicos que falam de expedições submarinas ao largo da costa portuguesa, entre anémonas cor-de-rosa e peixes azuis escondidos em recifes de corais vermelhos (?). Tudo isto confirmado por uma senhora, Estibaliz Berecibar (o susto que devem ter apanhado, coitadinhos…), que se maravilhou com os corais cor-de-rosa e lilás! A bióloga, com nome de medicamento, mostrou-se no entanto desapontada pela falta de ouriços e estrelas-do-mar (estavam todas no Big Brother vip) e nada disse sobre a galinha bicéfala em que se transformou o governo, julgando ser águia imperial, nem confirmou se entre os peixinhos azuis se encontravam dragões marinhos escondidos nos corais vermelhos das águas profundas das Berlengas.

Dizem que os miúdos andam stressados com os exames, e as avós trazem o nome de Jesus a pipilar no tremular dos lábios. A verdade, nua e crua, é a ansiedade em que todos andamos para saber, no próximo Sábado, qual o lugar que devia ter sido reservado: a estátua do marquês ou a avenida dos aliados. É que a nossa capacidade de maravilhamento não vai além das papoilas saltitantes ou das miosótis rastejantes, tão azuis como as belas centáureas, e quando mete águias, bicéfalas ou não, e dragões, marinhos ou fluviais, o encantamento só termina na Alfa centauro.



quarta-feira, 1 de maio de 2013

AS ESTÁTUAS EQUESTRES E OS TRABALHADORES QUE AS FAZEM

 
 
 

           Quando visito cidades não dou especial atenção à estatuária e faço mal. Em Madrid, na Praça do Oriente, sempre fascinado pela ópera, pus-me a admirar a fachada do teatro real e não prestei a devida atenção à magnífica estátua de Filipe IV. Trata-se da primeira estátua equestre em que o cavalo se empina totalmente e é por isso, e pela sua inegável beleza, um marco na história da arte e uma das três melhores do mundo. O regresso a Madrid para a reparação de tão grave descuido impõe-se portanto (aproveito e espreito a temporada do teatro, à falta do nosso, e se não for ópera será uma zarzuela salerosa, olé!). Voltando à estátua, o rei monta um cavalo e não vice-versa, e por isso diz-se que a estátua é equestre, embora por vezes duvidamos de que lado está a besta.
A que propósito falo de estátuas de reis em dia do trabalhador? Não é que a revolta de Chicago não mereça ser contada mas sendo a mesma conhecida ou acessível optei por contar a história de uma estátua, que é também a história de quem a construiu.
          Quis Filipe IV de Espanha e III de Portugal, homem que tinha um ego maior do que o mundo que dominava, uma estátua que o imortalizasse e que ensombrasse a de seu pai. Que fosse maior e mais grandiosa e em que o cavalo parecesse galopar contra as hostes holandeses que o roubavam ou contra os portugueses a quem ambos roubavam. Nada de coreografias corteses como a de Filipe III.
O conde-duque de Olivares, conde por parte do pai e duque por parte da solicitude, logo tratou de a encomendar ao melhor escultor da época, um toscano, que se viu grego para realizar tal feito dada a dificuldade técnica de pôr um cavalo sustentado em duas patas, coisa até então nunca tentada. Seis anos trabalhou o escultor tentando resolver o problema. Desesperado, pediu ajuda a Galileu Galilei que se perguntou porque queria o rei uma estátua que parecesse mover-se quando movendo-se a Terra movia-se a estátua com ela.
Resolvido a ficar pela aparência, não fosse o rei enjoar com tanto movimento, o matemático de Pisa e de Pádua mediu então a obra, calculou o ângulo em que devia ficar o empinanço do bicho, quantificou o bronze necessário e por fim aconselhou Pietro Tacca a fazer as pernas traseiras maciças e as dianteiras ocas, de forma a trazer o centro de gravidade para trás permitindo um melhor equilíbrio. Tacca assim fez, e com medo que fosse insuficiente, engenhosamente pôs a cauda do animal a arrostar pelo chão permitindo assim um apoio dissimulado. Outras bestas, alçando-se nos quartos traseiros, à falta de cauda apoiam-se em quem trabalha, não vá porem as mãos no chão e descobrir-se-lhes a natureza.
          Mas o escultor não conhecia o rei. Cavalos há muitos, pensou, mas Filipe IV há só um, embora em França já tivesse havido outro alguns séculos antes, e pediu a Velásquez o retrato do rei que prontamente lhe enviou um de corpo inteiro, provando que a rapidez é inimiga da perfeição, como adiante se verá. Foi assim a estátua feita pelo melhor escultor da altura, depois de seis penosos anos, com a ajuda de um dos grandes cientistas mundiais e do maior pintor de Espanha (que por acaso tinha sangue português, do Porto).
O cavalo, alçando-se num magnífico courbette (curveta para os puros), ficou lindo e soberbo. O cavaleiro olha em frente, garboso, segurando as rédeas com firmeza enquanto empunha o bastão de comando na mão direita, enfrentado o mundo de peito aberto sob a armadura onde a faixa de capitão general baila ao vento em filigranas de bronze. Nem nos tempos de Roma se viu coisa assim! Rói-te de inveja Marco Aurélio, tu e o teu cavalinho de carrossel, porque tudo aquilo é grandioso, tudo aquilo é soberbo, tudo aquilo é movimento numa maravilha da técnica e da estética mas (há sempre um mas), o rei não gostou!...
Filipe IV, o Grande, o rei Planeta, não gostou. Não se parecia com ele! Sou muito mais bonito, ouviram-no dizer pelos corredores do Alcázar de Madrid.
Suponho que todos já nos sentimos como se deve ter sentido o velho Tacca. Um pequeno erro nas contas depois de horas de verificação, o pequeno buraco que ninguém viu na extensão do trabalho que levou dias a pensar e outros tantos a fazer, fazem feio o chefe e estragam qualquer esforço por maior que tenha sido.
Faça o trabalhador o que fizer, se não fizer belo o príncipe de nada lhe vale. Só lhe restam duas soluções: retomar a obra ou cortar a cabeça… do príncipe, é claro!