domingo, 8 de dezembro de 2013

SENHORA DA CONCEIÇÃO OU IMACULADA CONCEIÇÃO?

 
O latim do povo nunca foi grande coisa, percebe bem o Dominus vobiscum mas quando titubeia Et cum spiritu tuo, entaramela-se-lhe a língua e sai goliarda. Destas confusões nasce por vezes coisa acertada, como o dia de hoje. Celebra o povo, e eu com ele, o dia de Nossa Senhora da Conceição enquanto a Igreja celebra o dia da Imaculada Conceição. Parecendo que é o mesmo, não é! Embora resulte do mau latim do povo, o certo é que uma é mãe e outra filha.
Existe uma ideia há muito enraizada que falar da imaculada conceição é meter o pecado ao barulho, logo o sexo. É até ocasião para anedotas e risos alvares. No entanto toda a gente sabe que desde que não haja abusos, e dentro das regras impostas, a Igreja não considera o sexo pecado (!). Melhor fazê-lo que ficar abrasado, já dizia S. Paulo que conhecia bem as brasas que nos atormentam, e aconselhava os membros do casal a não se negarem um ao outro.
O assunto prende-se não com sexo, mas com o pecado original, o da desobediência: a ingestão do fruto proibido. Comeram os nossos pais primordiais o fruto do conhecimento. Ou porque estivesse verde ou maduro demais, o certo é que o resultado não foi satisfatório tendo em conta a ignorância que por aí grassa. A única coisa de que tiveram conhecimento foi saberem-se nus e mortais. Consequentemente, perceberem a piada do sexo e já que iam morrer, quanto mais melhor. O que faziam por instinto passaram a fazer por gozo, mas daí a ser pecado vai um grande passo. Certos bispos e padres porém, por terem a perna curta, ameaçam com as chamas do inferno.
Diz a Igreja que Nossa Senhora nasceu, ou antes, foi concebida, logo no ventre de sua mãe, sem o pecado original que fustiga toda a humanidade condenada a pagar pelo crime dos primeiros progenitores. Eram os pais de Nossa Senhora bem casados e sem dívidas ao fisco, logo o sexo que usaram para a conceber era honesto e sem sombra de pecado. Nossa Senhora nasceu isenta do pecado que afecta toda a Humanidade, apesar do sexo que lhe deu origem. Isto é o que significa a Imaculada Conceição: aquela senhora em cima da lua pisando com desprezo a serpente maligna.
Esclarecida a dúvida, onde fica a diferença? Se Nossa Senhora foi concebida, também concebeu, e o povo, que foge das intricadas considerações teológicas como o diabo da cruz, entendeu, e muito bem, que a Senhora da Conceição queria dizer isso mesmo: a mulher que concebe. Isto é, a Mãe. Torna-se assim Nossa Senhora no arquétipo da Mãe, segundo o pensar do povo que não faz ideia do significado do palavrão.
E foi à Senhora da Conceição, à Mãe, que D. João IV, o da Restauração tão falada ultimamente, decidiu ceder a coroa de Portugal para que ela governasse sobre nós como rainha e protectora. E fez o rei muito bem porque Portugal precisa de uma mãe que cuide da Pátria, que os pais que tem tido se revelaram ora ausentes ora padrastos. Uma Mátria e não Pátria, como queria Natália Correia, e lá está a imagem da nossa rainha, no seu paço de Vila Viçosa, em cima da Lua, não filha concebida, mas mãe com seu filho ao colo.
Mais ordenou o rei que os estudantes universitários, antes de se licenciarem, jurassem defender a Imaculada Conceição da Mãe de Deus. A prática caiu em desuso o que explica o estado a que isto chegou. Os licenciados de agora não fazem a mínima ideia do significado de imaculada e a Conceição é uma estagiária boazona que conheceram na queima das fitas. A pressa com que se tiram licenciaturas não dá para exames quanto mais para juramentos…  
O Papa Pio IX, incomodado com a história de o povo ter deixado cair a imaculada para ficar só com a conceição, decidiu pôr fim à confusão e transformou o que era crença em dogma.
Corria o ano de 1854 e as cinzas da revolução francesa encontravam-se finalmente apagadas, pelo que era o mundo um lugar decente e bem frequentado. Havia a guerra da Crimeia, mas ficava longe e não passava de um playground onde a aristocracia europeia descarregava a testosterona. Com tanta decência surgiu nesse ano o partido republicano americano, ainda sem Sarah Palin, que reivindicava uma ideia fracturante da esquerda: o fim da escravatura. Não tinha assim Sua Santidade nada que o preocupasse, pelo que a ideia de Nossa Senhora isenta do pecado original animou os corredores do Vaticano. Tanta animação resultou na Bula Ineffabilis Deus.  
A crença na Imaculada Conceição, isto é, Nossa Senhora concebida e nascida sem a mancha do pecado original, passa a obrigatória para todos os católicos lançando de uma assentada para a excomunhão póstuma S. Tomás de Aquino, S. Bernardo e o papa Bento XIV, que em séculos anteriores tinham achado a ideia disparatada. O povo católico diz que sim, mas o coração mantém a devoção antiga à Senhora da Conceição: à Mãe. Os cristãos ortodoxos, inimigos de novidades como ortodoxos que se prezam, não aceitam. Os protestantes, como de costume, protestam fazendo jus ao nome.
Curiosamente, o Islão já havia afirmado a isenção do pecado em Nossa Senhora muito antes de Pio IX, o que não fazendo do Papa um bom muçulmano fez dele um crente do adágio de que vêm as ajudas de onde menos se espera.
É caso para dizer que não havia necessidade!
 
Fotos: Senhora da Conceição, padroeira de Portugal – Matriz de Vila Viçosa
Imaculada Conceição - basílica de Santa Maria Maior, Bergamo, Itália



2 comentários:

  1. As coisas que nos ensinas, é de louvar obrigada

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    1. Obrigado. Espero ter divertido também, pois é dia de festa e eu gosto muito da Senhora da Conceição.

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