sábado, 29 de junho de 2013

SÃO PEDRO E A SUA CADEIRA

 

          Hoje é dia de São Pedro, aquele que guarda as chaves do Céu e porque é “pedra”, edifica-se à sua volta a Igreja, isto é, o corpo místico de Cristo que somos todos nós. Lendo as suas duas cartas colocadas no Novo Testamento, encontramos um homem simples, popular, que não se deixa intimidar pelo meio intelectual e filosófico do mundo grego onde se movimenta e que fala sobretudo através de frases feitas do senso comum e dos ditados populares tão ao gosto de um Jerónimo de Sousa, outro papa de outras “igrejas”: “O cão voltou ao seu próprio vómito e a porca acabada de se lavar voltou a revolver-se na lama.” 2º Pd 2,22.

          É assim para quem ocupa a cadeira de Pedro. O actual papa gosta de usar sentenças simples, carregadas de bom senso que voam directas e certeiras ao coração dos homens e das mulheres: “Não existe mãe solteira, existe mãe…”.

          De gostos simples (que não se podem confundir com humildade), e extrovertido, lida bem com as situações que saem da norma reagindo rapidamente. Característica que lhe permite pegar numa criança e colocá-la no papamobile, causando sobressaltos à segurança e fazendo as delícias dos meios de comunicação, que aproveitam a circunstância de o papa ter problemas ortopédicos que o obrigam a recusar os tradicionais sapatos vermelhos simbolizando o sangue dos mártires, para o compararem com a aparente sofisticação do anterior papa.

           O povo cai na armadilha dos meios de comunicação. Os mesmos meios que denegriram a imagem do anterior papa correm agora a criar a imagem de um papa amigo e simples, imagem que o Vaticano se apressa a corroborar.

          A humildade de Bento XVI que o impedia de recusar o tradicional para impor a sua vontade (os humildes não impõem vontades, mesmo as mais simples), a sua sofisticação que se manifestava no gosto pelo belo artístico, pela filosofia e pelo confronto intelectual, criaram a imagem de um ultramontano. Introvertido por natureza, lidava mal com as situações inesperadas e com os media. O ultramontanismo de que lhe acusam não deixa de ser irónico num papa cujas características o aproximavam da simplicidade de um protestantismo germânico.

          Se o papa Francisco diz rapidamente coisas bonitas, simples e populares, Bento XVI, logo no início do seu pontificado, escreveu o mesmo e muito mais na sua maravilhosa e luminosa encíclica: “Deus é Amor” onde, sem timidez, fala do amor sexual, da amizade e da caridade que só o é quando olha o outro como a verdadeira imagem de um Deus que não se pode conhecer.

          Fora a sofisticação intelectual e a submissão à tradição, nada de mais substantivo separa os dois papas.

         Esta minha divisão entre dois papas vivos, é São Pedro quem vai resolver quando, reconhecendo as suas limitações intelectuais, fala de Paulo, outro santo de quem se comemora o dia e que escreve à maneira da escola filosófica grega:

“Reparem na paciência de nosso Senhor. Ela é para nossa salvação, tal como disse o nosso caríssimo irmão Paulo ao escrever-lhes, conforme a sabedoria que Deus lhe deu.

Escreveu isso em todas as cartas quando trata deste assunto. Nessas cartas, há passagens difíceis de entender que os ignorantes e pouco firmes na fé explicam erradamente, como fazem com outras passagens da Escritura, para sua própria perdição.” 2º Pd 3, 15-16

 
Pronto, está um lindo dia e é tempo para ir à rua festejar com alegria o ciclo dos santos populares.
 

Imagem: São Pedro de Grão Vasco, tirada daqui:



quarta-feira, 26 de junho de 2013

A QUEM TE BATER NUMA DAS FACES, MANDELA...

 
A quem te bater numa das faces, oferece-lhe também a outra; e a quem te levar a capa, não impeças de levar também a túnica.
Lc. 6, 29
 
       É dura a recomendação evangélica. Muitos lêem-na como sinal de humilhação e derrota perante os outros, e no entanto é sinal de exaltação e vitória.
       Mandela, preso durante mais de 25 longos anos, conseguiu vencer o ódio. Primeiro o seu e depois o dos seus inimigos.
       Hoje tem o mundo a seus pés e os antigos inimigos ajoelham elevando as mãos e as preces aos céus, pedindo por ele.
       Despojando-se do ódio e do poder, dando a outra face e a túnica, é hoje o homem mais amado e mais poderoso no coração do mundo. Quem lhe bateu e lhe levou a capa jaz humilhado.
        Francisco de Assis escreveu, Mandela pôs em prática:
 
Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz.
Onde houver ódio, que eu leve o amor;
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão;
Onde houver discórdia, que eu leve a união;
Onde houver dúvida, que eu leve a fé;
Onde houver erro, que eu leve a verdade;
Onde houver desespero, que eu leve a esperança;
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria;
Onde houver trevas, que eu leve a luz.
Ó Mestre, Fazei que eu procure mais
Consolar, que ser consolado;
compreender, que ser compreendido;
amar, que ser amado.
Pois, é dando que se recebe,
é perdoando que se é perdoado,
e é morrendo que se vive para a vida eterna.
 
imagem tirada daqui:


domingo, 23 de junho de 2013

A BELEZA DO SÃO JOÃO


 
            O uso do cabelo comprido tem sido, ao longo dos tempos, apanágio das mulheres, no entanto muitos homens usaram caracóis e tranças, tendo sido até moda nalgumas épocas. Luís XIV, o rei Sol, vangloriava-se da sua enorme cabeleira encaracolada que dizia ser dele próprio e não postiça como era costume. Outros deixaram crescer os cabelos como símbolo de dedicação a Deus. Alguns tiveram um fim trágico por causa disso, como nos conta a Bíblia no episódio de Sansão.

João Baptista, tal como Sansão, pertencia à “escola” Nazarita onde foi educado a deixar crescer o cabelo e a abster-se de vinho, em total dedicação a Deus. Tal como Sansão teve um fim trágico. Cortaram-lhe a cabeça que foi oferecida numa bandeja de prata a Herodíade, princesa judia e amante do cunhado, o rei Herodes.

O santo precursor, que era filho de gente fina (o pai, Zacarias, era sacerdote e a mãe, Isabel e prima da virgem Maria, era também descendente de sacerdotes famosos) vivia no deserto, devido aos seus votos. Vestia-se de pele de camelo, comia gafanhotos e bebia mel. Vinho, nem cheirá-lo! Porque o vestem de lã e com um cordeirinho ao colo, feito pastor, é um mistério que o povo na sua sabedoria lá terá entendido que seria o melhor. Coisa de mulheres, certamente, a quem não agradavam o aspecto barbudo e cabeludo e camelos bastava-lhes os que tinham por marido. Assim, de pastorinho, ficava melhor no topo da cascata das Fontainhas.

João, primo de Jesus a quem baptizou no rio Jordão, mandava distribuir os bens pelos pobres, clamava contra a corrupção e mandava os soldados pôr a sua força ao serviço da justiça. Contrariando a arrogância dos judeus, vaidosos da escolha de Deus, dizia alto e bom som que o amor de Deus era universal: destinado a judeus e não judeus: foi preso e atirado numa masmorra do rei Herodes, que contudo simpatizava com o santo homem.

O povo amou-o desde sempre e a sua festa tornou-se tão importante que quando os exércitos rivais da guerra civil do império Carolíngio, no século IX, se encontraram frente a frente no dia 23 de Junho de 841 em Fontenay, deliberaram de comum acordo iniciar a batalha somente após a festa do santo; a 25 de Junho a guerra civil terminou com a vitória de um dos lados.

São João morreu, como disse, com a cabeça cortada. Salomé, a jovem princesa filha de Herodíade, assim pediu a Herodes depois de dançar para toda a corte, deixando-a a ferver de excitação. Cumpria um pedido de sua mãe que odiava João por este protestar contra a sua união com Herodes, o irmão do seu falecido marido. O famoso escritor Oscar Wilde escreveu sobre o assunto uma peça dramática que Richard Strauss, no início do século XX, pôs em ópera para grande escândalo da sociedade de então, tendo sido proibida em Londres, Viena e Salzburgo. Wilde afirmava que a jovem Salomé se vingara pela falta de atenção que João lhe dera, quando o visitara na prisão e se deixara encantar pelos longos cabelos, barba à George Clooney e o corpo enxuto de quem faz dieta rigorosa, que nem o Cristiano Ronaldo.

Era belo o João Baptista, mas uma mulher despeitada é pior do que o mais poderoso exército!
 
imagem: o clímax de Salomé por Audrey Beardsley, roubado daqui



sábado, 15 de junho de 2013

SANTO ANTÓNIO, ALFAMA E AUTÁRQUICAS

 
Jan Morris, no seu livro sobre Veneza, conta a história de um senador veneziano que aproximando-se de um visitante inglês na basílica de São Marcos, quando a congregação se inclinava em profunda adoração ao Santíssimo exposto, amavelmente lhe pediu que se ajoelhasse. O inglês respondeu-lhe que não o fazia porque não acreditava na transubstanciação, ao que o senador lhe disse: “- Nem eu, mas o senhor ou se ajoelha ou sai já desta igreja!”. É assim Alfama em dia de Santo António: ou se comemora o santo, acreditando-se ou não nos seus milagres, ou se abandona o lugar.
Porque Alfama, ao contrário de Veneza onde até a sombra da sua grandeza se arrisca a desaparecer (Wordsworth dixit), continua popular como sempre foi e só desaparecerá com o povo que nela habita. Alfama não se enreda em milagres grandiosos e complicados como a transubstanciação, que faz a delícia de filósofos e teólogos. Basta-lhe crer que santo António lhe encontre noivo da mesma forma que lhe encontra a chave da porta que se perdeu. Alfama é uma curva livre e sensual ao longo da encosta do castelo que se debruça sobre o rio, apanhando o sol à varanda de Santo Estêvão e descendo de pé descalço os pátios e largos de São Miguel, numa graça de mulher.
As casas são pequenas, mal cabe a família, mas quem tem ruas por jardim, varandas de fresco como Santo Estêvão, arcos de ruelas por janelas de ver o rio e pátios para conversar com os vizinhos, receber visitas e vigiar as filhas namoradeiras, não precisa de salões.
Niemeyer, que gostava de curvas, construiu, no entanto, um pesadelo autoritário e tirânico chamado Brasília e Corbusier, obcecado pelo espaço livre, desenhou pátios e terraços onde nem os gatos arranjam tempo para os cantares do cio. É o povo que faz a cidade. Todo o estudante de urbanismo devia visitar por duas vezes Alfama: a primeira para estudar o desenho das suas ruas e largos, e as linhas de vista por onde se adivinha o mundo, porque se vê o Tejo. A segunda, em noite de Santo António, para ver como o povo usa a rua, o pátio e o largo, deixando a casa para a única tarefa que lhe compete: abrigo para dormir.
Em época de eleições autárquicas, o mesmo conselho dou a todo e qualquer candidato. Devia mesmo ser prova obrigatória para ocupação de cargo autárquico. Porque não basta o bom desenho urbano de Alfama construída por arquitecto desconhecido. O povo que a habita é essencial para a sua sobrevivência: a avó que vigia, o neto que corre a ver o rio, o canário que canta à janela, o gato que se espraia ao sol, o cão que lambe as chagas, a mulher e o homem que regressam no fim da jornada de trabalho.
Alfama reabilitada para estudantes, yuppies, ou poetas melancólicos, não será Alfama, e parque temático para turistas; Óbidos chega e sobra.



domingo, 9 de junho de 2013

O DIA DE CAMÕES, GASPAR E A CHUVA: "À BOMBA QUE NOS IMOS ALAGANDO"

 

Dia de Portugal, o país que se celebra no aniversário da morte (início da eternidade) de um poeta.
Para um país que não gosta de ler dá jeito comemorar desta forma Camões: posto assim em altar, como a um santo, crê-se inimitável e inultrapassável, dispensando os portugueses de lerem seja o que for por nada estar à altura daquele que celebram.
Não se lendo nada, muito menos se lê Camões, até porque os portugueses acreditam que de Camões todos têm um pouco. Tivesse Gaspar, por exemplo, lido Camões, e teria previsto que o mau tempo poria em perigo a nau portuguesa, dando tempo ao governo de dar à bomba para alijar a água que foi metendo borda dentro.
 
Mas, nesse passo, assi prontos estando,
Eis o mestre, que olhando os ares anda,
O apito toca: acordam, despertando,
Os marinheiros dhua e doutra banda.
E, porque o vento vinha refrescando,
Os traquetes das gáveas tomar manda.
“Alerta (disse) estai, que o vento crece
Daquela nuvem negra que aparece!”
 
Não eram os traquetes bem tomados,
Quando dá a grande e súbita procela.
“Amaina (disse o mestre a grandes brados),
Amaina (disse), amaina a grande vela!”
Não esperam os ventos indinados
Que, amainassem, mas, juntos dando nela,
Em pedaços a fazem cum ruído
Que o Mundo pareceu ser destruído!
 
O céu fere com gritos nisto a gente,
Cum súbito temor e desacordo;
Que, no romper da vela, a nau pendente
Toma grão suma de água pelo bordo.
“Alija (disse o mestre rijamente),
Alija tudo ao mar, não falte acordo!
Vão outros dar à bomba, não cessando;
À bomba, que nos imos alagando!”
(Camões: Os Lusíadas, canto VI, ests. 70, 71 e 72)


quarta-feira, 5 de junho de 2013

CLUBE COM NOME DE CERVEJA

Existe um clube onde as reuniões não são mais do que a forma que o diabo tem para organizar a lista para apresentar nas audiências com o Criador, quando da distribuição das almas, onde Deus sai sempre perdedor. É que poucos resistem ao glamour dos salões do mafarrico e quando o convite chega não há santo que resista.
O sócio português do clube é dono de jornais. Não de fábricas que produzam valor acrescentado para o país, não: de jornais e revistas que enchem as salas de espera de cabeleireiros e dentistas. Isto de ser dono de jornais e milionário num país onde ninguém lê tem que se lhe diga, desde que um pobre tipógrafo com quarto arrendado fundou o Diário de Notícias permitindo, mais tarde, que a filha e o genro assentassem arraiais em palácio seiscentista à Graça. Ter sido, a filha, protagonista de um dos maiores escândalos de alcova na 1ª república, que mais não deu que um livro esquecido nas prateleiras das livrarias, diz muito sobre a alfabetização do país e a riqueza que se cria com a ignorância das letras.
Aos membros do clube que manda no mundo (se excluirmos a China que foi e é quem sempre mandou, como os espanhóis descobriram no século XVII), é costume apresentarem os futuros primeiros-ministros de Portugal. Mas Passos Coelho não foi à reunião do clube, oiço dizer. É verdade, mas também se diz que Passos Coelho não passa de uma figura decorativa: o rapaz é jeitoso, tem charme e dizem que é inteligente e eu acredito; porque quem manda é um tal que veio da América escolhido pelo clube, com nome parecido aos Bórgias, mas que nem Lucrécia nem César quereriam para escabelo dos pés.
Só isto seria já razão de sobra para ir para a rua gritar, mas não como faz alguma gente mal-educada que impede os outros de falar (não vá dizerem algo de útil), fazendo muito ruído na esperança que confundam a arruaça com assaltos ao palácio de inverno. Ir para a rua gritar para que me ouvissem e deixar que se ouvissem. Se acrescentarmos um presidente que convoca o conselho de estado para discutir a situação que virá depois da troika, fingindo fazer alguma coisa para que se esqueça a actual, verão que me sobram razões para gritar de peito aberto ao vento.
A gritar ou não gritar, como diz o outro, não é que oiço dizer que a esperança de Portugal foi também convidada a ir ao beija-mão dos sócios do clube, levando por companhia o braço direito do actual primeiro, que foi o que se pôde arranjar, porque a esquerda não sabe comer de garfo e faca (o caviar come-se à colher), e o homem não é esquisito? Dizem que o jovem promissor, sem forças para recusar mas seguro de si, fez peito cheio e disse: que sim, que ia, para lhes dizer umas verdades, cara a cara, como quem não teme os grandes do mundo!
E se assim é, desculpe-me o leitor, mas agora é que tem de ser: vou ali à rua GRITAR.
 - Ó Paulinho, vais ver o que lhes vou dizer, que a mim não me comem!
- Olha Tózé, diz lá o que tens a dizer, mas pelo amor de Deus não faças essa boquinha, que pode parecer mal. É gente muito sensível…
- E ó Paulinho, o vinco? Achas que o vinco das calças está no sítio? Não quero fazer má figura, assim, logo de início. Tu entendes…
- O vinco tá bem, Tózé. Mas esse pullover…?! Onde é que compras isso? Na feira das Caldas?
- Ó Paulinho, é que me constipo, e depois fanhoso custa-me a fazer voz grossa!