quarta-feira, 28 de maio de 2014

MASTER CHEF

 
A proliferação de programas de culinária feitos por gente jovem, que rompe cânones, muito tem feito para o prestígio de um valor cultural que se foi perdendo na voragem do mundo moderno. O acto cultural de saber cozinhar perdeu-se e há crianças no mundo ocidental que não sabem o que é um assado e à pergunta sobre o prato preferido, a pizza hut ganha à avó, que o mais das vezes é ela também uma fervorosa adepta do fastfood.
O gosto de cozinhar vai chegando lentamente às camadas mais jovens e isso deve-se, sem dúvida, a esses programas. Mas como não há fome que não dê em fartura as estações de televisão transformaram o acto de cozinhar num reality show e num concurso. Os preceitos da nouvelle cuisine chegam a atingir o paroxismo mas é a velocidade com que tem de se cozinhar que me tira do sério. Como se não estivéssemos a falar de uma arte que deve ser feita com amor, e que convém não apressar. É que um valor cultural, património dos povos, não é o mesmo que uma corrida de 100 metros.
Se a pressa conduz ao crudivorismo, espero sinceramente que a ênfase posta na apresentação dos pratos não nos leve à situação que ocorreu naquele célebre palacete, ao nº 202 da avenida dos Campos Elísios, onde habitava Jacinto que trocou Paris pelo Douro, o que não admira!
Mas quando o arroz-doce apareceu triunfalmente, que vexame! Era um prato monumental, de grande arte! O arroz, maciço, moldado em forma de pirâmide do Egito, emergia duma calda de cereja, e desaparecia sob os frutos secos que o revestiam até ao cimo onde se equilibrava uma coroa de Conde feita de chocolate e gomos de tangerina gelada! E as iniciais, a data, tão lindas e graves na canela ingênua, vinham traçadas nas bordas da travessa com violetas pralinadas! Repelimos, num mudo horror, o prato acanalhado.
 
Excerto de “A Cidade e as Serras” de Eça de Queiroz



quinta-feira, 22 de maio de 2014

LISBOA, CAPITAL DA IBÉRIA

Filipe II de Espanha foi o nosso Filipe I porque de facto e de jure nunca perdemos a independência. Tínhamos o mesmo soberano mas os países não se fundiram. Não fosse a circunstância de o poder real naquele tempo ser imenso quando comparado ao da actual soberana inglesa e diria que a nossa situação era semelhante a um Canadá ou a uma Austrália. Filipe II abandonou Sevilha e fundou capital em Madrid e em Lisboa, que o recebia sempre com grande solenidade, pompa e festa.
Procissões, arcos do triunfo engalanados, vestes de brocado, passeios no rio e touradas ali ao terreiro do Paço, tudo para encantamento de Filipe que vinha de um pequeno lugarejo, sem graça e sem gentes, onde fizera a sua principal residência: Madrid. Também é certo que ninguém o mandou abandonar Sevilha, muito mais alegre e prazenteira, mas fico-me por aqui que aquele nome andaluz não é bem visto pelas bandas da 2ª circular.
Madrid vem de novo a Lisboa e até traz o rei e, por supuesto, a rainha. E de novo o Tejo se enfeita porque Lisboa, por um dia que seja, será a capital das Espanhas, a capital da Ibéria. Sejam muito bem vindos e que ganhe o mais português dos clubes madrilenos.

“El Puerto” do 1º livro da suite Ibéria de Isaac Albeniz


domingo, 18 de maio de 2014

UM LIVRO QUASE IMPOSSÍVEL


As ruínas do tempo erguem mansões de eternidade.

"ULYSSES" de James Joyce, um livro que não mudou a minha forma de encarar o mundo mas definitivamente mudou a forma de olhar a literatura. Lido na excelente tradução (tarefa quase impossível neste livro) de Jorge Vaz de Carvalho a quem já conhecia como excelente cantor de ópera e que aqui se revela um excelente tradutor.
http://visao.sapo.pt/ulisses-de-james-joyce-traduzido-por-jorge-vaz-de-carvalho-publicado-pela-relogio-dagua=f759384

sexta-feira, 9 de maio de 2014

BIOGRAFIAS DE RETORNADOS

A biografia dos pobres e dos simples é, para usar a terminologia em voga, descomplicada. Basta por vezes um epíteto para os definir. A dos famosos, pelo contrário, é cheia de glamour, mesmo a dos tempos em que eram simples e desconhecidos.
Lídia Jorge, em entrevista à televisão, dissertando sobre a alegria dos que regressaram a Portugal após uma vida de exílio, possível por causa do 25 de Abril, afirmou que ela própria assim fez. Que não regressava das terras de França ou da Argélia que acolheram os opositores ao regime derrubado, como certamente pensou quem a ouviu, foi facto que não julgou necessário esclarecer.

Casada com um militar em serviço na guerra colonial, regressou de África onde ensinou nos liceus coloniais de Angola e Moçambique, como professora do ensino público português. O brilho das letras da excelente escritora acabou por transmutar o retornado em exilado.
Outros, às meias verdades mais ou menos épicas a lembrar Ulisses ou Penélopes, preferem a técnica de diversão: realçar o positivo e enterrar o negativo.
Otelo Saraiva de Carvalho, que a par de Salgueiro Maia arriscou tudo, vida e carreira, para fazer o 25 de Abril, enquanto outros preferiram esperar para ver e aparecer, diz sempre a quem o quer ouvir, que desde pequenino lhe desgostavam as injustiças que via na sua, e minha, Moçambique natal, daí a ânsia de as combater.
Levou tempo a ver de onde vinham as injustiças e com 17 anos ainda participava na mocidade portuguesa, num liceu de uma colónia que pouco tempo antes se agitara em torno da candidatura de Norton de Matos. Mais tarde não hesitou em integrar as forças armadas que lutavam contra os movimentos independentistas das colónias e em dar instrução à Legião Portuguesa, força paramilitar de cariz marcadamente fascista que apoiava a ditadura portuguesa que permitia as injustiças que via quando menino.
Felizmente para nós mudou a tempo de opinião e, num gesto que o redime, libertou-nos da injustiça. Otelo prefere no entanto lembrar-se da inocência do menino que imagina ter sido e esquecer-se da militância fascista do adulto.
Eu, que como a maioria dos retornados pouca ou nenhuma consciência política tinha até ao 25 de Abril, larguei aos 12 anos a mocidade portuguesa a que me obrigaram por não gostar dos seus tiques autoritários. Tal como a Otelo desgostam-me as injustiças mas não tenho o mérito de um gesto redentor como o dele para apagar a inércia resultante daquela ignorância política em que nos adormeciam. Preferiria no entanto aparecer numa biografia como arrependido que se redime, do que desmemoriado e credor. Mas isso sou eu que não logrei alcançar a fama e a honra que advém dos grandes feitos. Por isso na minha biografia fui, sou e serei sempre retornado sem honras de exilado ou de libertador dos povos.
Filho de Adão e de Eva sinto-me exilado de um paraíso perdido, mas não há Joyce que cante o vulgar Bloom que sou. Retornado serei. Intrépido descobridor de virtudes próprias e dourador de memórias é que não.
E agora fiquem com mais outra biografia fantasiosa, a do retornado Vasco da Gama, o mais bruto dos nossos descobridores, na voz de Plácido Domingo cantando O Paradis, da ópera de Meyerbeer, “L’Africaine”.


quarta-feira, 7 de maio de 2014

A LIMPEZA DAS ENTRADAS

 
 
Tenho por mulher (alguma sorte me calharia em vida), uma excelente dona de casa: Insiste sempre em manter limpa a entrada do lar. Já lhe disse que isso não conta para nada. Que o que está a dar e o que interessa é uma saída limpa!
Não faz caso nenhum…



sexta-feira, 2 de maio de 2014

OS ACESSOS DA JUSTIÇA

 

Julgo que é do senso comum, e qualquer iletrado perceberá, ser o acesso à Justiça um dos factores essenciais para a implementação da democracia. Coisa diferente é o acesso aos tribunais, um problema de engenharia e arquitectura já convenientemente regulamentado e inconvenientemente cumprido.

Se alguém se apresentar num tribunal e clamar por Justiça terá, antes de ser ouvido, de pagar o valor preparatório das custas. Depois deverá adquirir, a preço de ocasião, um bom sofá para que a espera o não canse.

Hoje discute-se a justiça (assim, com letra miúda) no parlamento. De um lado a senhora ministra defendendo, com o denodo que se lhe conhece, o fecho de uma série de tribunais, do outro lado os da oposição gritando para que não se feche tribunal nenhum, porque sabem que o povo os ouve e ficará convencido que se preocupam verdadeiramente com ele.

Trazidos à colação, os autarcas protestam, como é seu dever, porque o fecho de um tribunal prejudica a economia do café do largo e lá se vai o frontispício em latim que tanto brilho dá à terra.

Eu, que gosto de guardar uma distância respeitosa e larga de qualquer tribunal, onde só vou obrigado e contrariado, penso que o acesso à Justiça (agora com letra graúda) passa pela diminuição do custo dos preparos das acções e a celeridade das mesmas e não pela distância a um edifício onde a maioria da população nunca põe os pés.

Tivesse o memorando da troika exigido que, em nome da economia, se discutisse somente o essencial em vez do acessório para que não se distraísse o povo do que verdadeiramente importa, e talvez não sentíssemos tanto a canga que nos impuseram.