sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

TIRANDO A NOSSA MISÉRIA, TOUT VA TRÈS BIEN


         Vai para aí uma casta de mensageiros que se tornou exímia em dourar a pílula. Assim a modos do médico que diz ao doente que ele tem um óptimo coração mesmo sabendo que o desgraçado morrerá dentro de dias vitimado por uma cirrose hepática.
Compreende-se. Leram uns livros de história e aprenderam que a vida não era um mar de rosas para quem tinha a incumbência de levar as más notícias ou avisar dos infortúnios. Dario, o rei da Pérsia, matou o conselheiro que lhe avisara contra as más estratégias que lhe trariam a derrota às mãos de Alexandre e Gengis Khan não era de modas: matava qualquer um que lhe trouxesse más notícias.
O mais requintado foi contudo David. Ao mensageiro que lhe trouxe a notícia da morte do rei Saul, seu inimigo, mandou-o matar acompanhado da seguinte sentença: “Só tu és o culpado da tua morte. A tua própria boca deu testemunho contra ti…”. Já diz a minha mãe: Pela boca morre o peixe…
Luís Montenegro, avisado mensageiro do governo, armado em carrasco de Cassandra, brindou-nos com a seguinte pérola capaz de fazer corar Charidemos, o infortunado conselheiro de Dario: “A vida das pessoas não está melhor mas a do País está muito melhor.”
Tem sorte o líder parlamentar em o Povo respeitar os velhos provérbios que Roma lhe legou: não mates o mensageiro, mas cuide-se porque guardava Roma outros provérbios e tratamentos para quem traía a confiança do Povo.
Se o governo desse tolerância para o carnaval, Luís Montenegro bem podia mascarar-se de mordomo da senhora marquesa e cantar: Tout va très bien, madame la marquise, não fosse ver morrer o Povo. À parte isso o país vai muito melhor!
 
«Tudo vai bem, senhora marquesa, não fosse a sua égua ter morrido, porque a estrebaria se incendiou, porque o fogo do château em chamas se propagou, porque as velas que acendi pegaram fogo ao château, e acendi-as para velar o marquês que, arruinado, se suicidou, e por isso vi morrer a sua égua. À parte isso, tudo vai bem, senhora marquesa.»
 


sábado, 22 de fevereiro de 2014

TORRES DE MARFIM

É nas épocas de crise que a cultura tem de mostrar a sua força para fazer frente aos “gestores” que não entendem que os sacrifícios só valem a pena por causa da cultura, como lembrava Churchill, um homem de cultura que governou um país em crise. Mas é também nas épocas de crise que se sacode o pó dos reposteiros e se deitam abaixo as torres de marfim.
Em 1958 Álvaro Malta, um cantor português, desafiava para um duelo Alfredo Kraus, um dos maiores cantores espanhóis de todos os tempos. Tudo por causa da Maria Callas, uma cantora americana com quem Malta entrara de braço dado no palco do São Carlos depois de Maria Callas ter “andado a dormir” com o Kraus. Cantava-se e representava-se a Traviata em Lisboa.
Apesar deste grande feito já quase ninguém fala de Álvaro Malta, obstreta e cantor que aos oitenta anos ainda fazia partos. Desconheço se ainda os faz. Tinha 58 anos quando deixou de cantar. A grande Callas não cantou a partir dos 51 anos. A crítica não lhe perdoava a velhice na voz, apesar da fama, glória e grandeza.
Em 2009 acabou em Portugal um projecto educativo musical interessante e a sua criadora, Maria João Pires, partiu para o Brasil. Governava o país, ainda sem crise, um governo de sinal contrário ao actual.
Um cantor português de 65 anos partiu para o Brasil, o lugar do Éden, o paraíso perdido, como acreditava Colombo. Não o querem ouvir, diz ele. Acha que ainda tem muito para dar, e eu acredito que sim. O filho, um escritor que nunca li (os excertos por onde passei os olhos não me entusiasmaram), com grande sucesso no nosso país, com prémio literários, veio a público dizer que este país não merece o pai (quiçá ele próprio, o escritor). O filho vive do seu trabalho de escritor, num país com uma população inferior à de Paris, Londres ou São Paulo, sem hábitos de leitura, e onde Torga precisava de dar consultas de otorrino para pôr o pão na mesa.
O pai, o cantor cujo sucesso se iniciou nos anos 70 durante o regime anterior ao 25 de Abril, em programas da televisão pública, acha agora que o país é mal agradecido. Sabemos que sim. Lembro-me ainda do que fizeram à Amália no período revolucionário, quando o cantor ganhava festivais da canção. Um país onde os críticos jamais se atreveriam a imitar a crítica estrangeira, que desancava na Callas, para beliscar um Tordo.
Falta-me pachorra para a auto comiseração. É caso para dizer: mal agradecidos.


sábado, 15 de fevereiro de 2014

O MUNDO, ESSE ESTRANHO LUGAR

 
Uma infanta de Espanha foi ouvida em tribunal por causa da utilização indevida de dinheiros públicos. Os “infantes” de Portugal, indiciados em coisas semelhantes, recebem prebendas e continuam as suas carreiras em grande estilo. Quem conseguir entender que entenda. Será esta a diferença entre monarquia e república?!
Um grupo de jovens, com idades, cultura e saber semelhantes, e a tontaria característica daquelas idades aliadas à crença de serem imortais como é próprio de jovens, envolveu-se, de sua livre e espontânea vontade, em jogos de dominação e submissão. Morreram todos, menos um. Agora culpam-no. De quê? De ter tido a sorte (ou o azar?) de ficar vivo?
Mataram, retalharam e deram a comer aos leões uma bela e elegante girafa. Rasgaram-se vestes e cobriram-se de cinzas as cabeças num gesto de estupor e indignação. Quantos namorados saíram ontem da auto-estrada para irem à Bairrada jantar? Azar dos leitões não terem pescoço!
Durante séculos passámos por “sem abrigo”. Com o nojo estampado no rosto, desviávamos o olhar e o passo. Durante anos vimos licenciados nas caixas de supermercado e nos call center’s. Toda a gente tira uma licenciatura, porque estranhar?! Agora tornaram-se também “sem abrigo” e assustámo-nos. Serão os licenciados sem abrigo as girafas e os outros sem abrigo as vacas e os leitões?
Quem disse que o mundo era um estranho lugar?



sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

GEORGES! ANDA VER O MEU MIRÓ...

 

Georges! Anda ver o meu país de marinheiros,
           a quem falta arrais que o leve a bom porto.
           Anda ver como levam a barca a pique,
           Como confundem arte com activos financeiros…
           Vem ver a barca!
Que linda vai com seu erro de ortografia…

Georges! Anda ver como as elites se sobressaltam
com a venda dos activos,
e não se inquietam por os teatros nacionais
não terem ainda programação conhecida.
E já vamos em Fevereiro, Georges!
 
Georges! Anda ver o meu país de juristas e magistrados,
discutindo Matisse e Picasso!
Afirma o juiz desembargador,
nova estrela da TV,
ser o surrealista e dadaísta Miró,
impressionista!
E catalão!
Ah Catalunha, nação irmã na opressão,
Que impressiona o desembargador,
mais a prima do mestre de obras,
com as naturezas mortas do Mercat de Sant Josep.
Georges! Hão-de todos os catalães ser por força
impressionistas…
Que linda vai com seu erro de ortografia… 

Georges! Anda ver meu país de romarias e procissões!
E verás, Georges, um povo rezando no templo das musas.
E como sacerdotisa a senhora procuradora
que vela pelo cumprimento das regras de bem vender
o que é de todos, e vai mais longe, Georges!
Entende que o Miró tem de ficar no país!
Pensavas, Georges, que era o governo,
o parlamento,
quem definia a política cultural do país?
Desengana-te, Georges,
que os tribunais estão cheios de gente culta!  

Achas bem, Georges?
Achas então que ela vai exigir a recuperação dos edifícios
Onde albergam as nossas aguarelas, os nossos óleos,
não lhes vá acontecer o mesmo que à Josefa d’Óbidos,
portuguesa e espanhola como o “nosso” Miró?
Deus te oiça, Georges! E uma providência cautelar eficaz,
contra as trovoadas que fazem arder,
as telas…! 

Georges! Anda ver o meu país de romarias,
e verás o líder da oposição em grande sobressalto
pela falta da cultura.
Ele que vive nas Caldas não teve ainda sobressalto,
que se visse,
pelo património de Dona Leonor.
Achas, Georges, que o órgão da Senhora do Pópulo vai voltar a tocar,
agora que o líder oposto se sobressaltou?
 
Georges! Anda ver como ando contente mais o povo
a discutir Braque e Miró, aquele senhor que pinta coisas
quase tão bonitas como um lenço de namorados.
Pensas, Georges, que
O bom povinho de fato novo,
nas violas de arame soluça, romântico,
fadinhos chorosos da su’ alma beata?
Não Georges! Ainda verás a alegria
de um Carnaval de Arlequim
em Torres Vedras!
 
Georges! Vão trazer os Miró’s de Saint James’s
para o Chiado que vai para obras de ampliação.
Sempre são 85, Georges! É muita parede…!
Tiram aos estudantes das belas artes, Georges?
Quem precisa de estudantes de belas artes
quando temos Miró’s, Georges!?
e um museu a encher, Georges!?
Dizes tu, Georges! que nem os ombros
e o colo desnudos da excelentíssima
e belíssima viscondessa de Menezes o conseguiram
até hoje, no Chiado?
A viscondessa frequenta o São Carlos?
Não?
É um quadro do museu…!? E tem os ombros nus…!? 

Vá! Georges, faze-te Manel! Viola ao peito,
toca a bailar!
 
Ó Georges, vê! Que excepcional cravina…
Que lindos cravos para pôr na botoeira!
Qu’é dos Pintores do meu país estranho,
Onde estão eles que não vêm pintar?

 

(com especial agradecimento ao António Nobre, poeta do Só)



domingo, 2 de fevereiro de 2014

CENTENÁRIO DE UMA TRAGÉDIA

Há horas do diabo, diz o povo e tem razão. Quando o arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do trono imperial austríaco, visitava Sarajevo com a sua mulher, três bombas esperavam o príncipe. O primeiro anarquista não conseguiu atirar a sua bomba e o segundo também não. Só o terceiro conseguiu mas falhou o alvo. A bomba bateu no carro e foi explodir sob o carro que seguia atrás. Salvou-se o príncipe e a mulher mas a mesma sorte não tiveram vinte pessoas que ficaram feridas. Parecia que um anjo bom protegia o príncipe salvando-o por três vezes.
Francisco Fernando resolveu visitar de imediato os feridos no hospital e deu ordem ao motorista para deixar o itinerário combinado. Este, perturbado, virou na rua errada. Ao dar-se conta parou o carro e manobrou para voltar de novo à rua de onde saíra. Tarde demais. À sua frente encontrava-se Gravilo Pincip, um jovem estudante e anarquista sérvio da Bósnia, que ansiava pela Grande Sérvia englobando os povos dos Balcãs. Ao ver o herdeiro do trono à sua frente não hesitou e matou-o a tiro, fazendo o diabo sorrir. Um mês depois a Áustria declarava guerra à Sérvia e a Rússia, aliada da Sérvia, declarou guerra à Áustria.
Três primos direitos que passavam as férias de Verão juntos, netos da Rainha Vitória, decidiram-se, naquele ano, por um Verão diferente. O Kaiser alemão desafiou o Czar russo, marido da sua prima, para o combate, e o rei inglês, primo do Kaiser, aborreceu-se com este e foi em defesa da czarina, sua prima. O Sultão turco, de olho nos Balcãs, vendo os primos à chapada, decidiu participar. Todos perderam excepto o rei inglês que obteve uma vitória de Pirro, tornando-se súbdito americano.
Comemora-se este ano o centenário daquela tragédia. Depois de nove milhões de soldados mortos, a queda de quatro impérios, uma Europa em ruínas e sujeita a uma crise económica terrível que a lançaria na segunda guerra, a Bósnia de Gravilo continua a não pertencer à Sérvia e esta perdeu parte do seu território enquanto o povo dos Balcãs lambe ainda as chagas de uma guerra fratricida terrível.
Gravilo Princip era anarquista e nacionalista, uma contradição nos termos. Não gostava do civilizado império onde vivia que não permitia a sua condenação à morte por ter dezanove anos de idade. Com o seu acto ajudou a construir o fascismo na Europa, abriu as portas ao nazismo e ao estalinismo e condenou à morte milhares de crianças.
Cem anos depois, a Europa continua a sofrer dessa maldita doença chamada nacionalismo.