sexta-feira, 25 de julho de 2014

UMA QUESTÃO DE MORAL

         Ricardo Salgado constituído arguido.
 
 
         Há a questão criminal mas há também a questão moral!
 
 
«No fundo da China existe um Mandarim mais rico que todos os reis de que a Fabula ou a Historia contam. D'elle nada conheces, nem o nome, nem o semblante, nem a sêda de que se veste. Para que tu herdes os seus cabedaes infindaveis, basta que toques essa campainha, posta a teu lado, sobre um livro. Elle soltará apenas um suspiro, n'esses confins da Mongolia. Será então um cadaver: e tu verás a teus pés mais ouro do que póde sonhar a ambição d'um avaro. Tu, que me lês e és um homem mortal, tocarás tu a campainha?»
 
Prólogo de “O Mandarim” de Eça de Queiroz

 

sábado, 19 de julho de 2014

UMA GUERRA DE CEM ANOS

 

Não, não estou a falar da guerra entre a França e a Inglaterra e que envolveu toda a Europa, Aljubarrota incluída, e que teve como protagonista Joana d’Arc. Estou a falar da que vai fazer um século no próximo dia 28 de Julho. Uma guerra que mudou radicalmente o mundo, como a guerra de Joana d’Arc mudou para sempre a Europa.

Uma guerra que dura há cem anos e que tinha inicialmente como objectivo curar a doença que assolava a Europa, como tão bem descreve Thomas Mann em a Montanha Mágica. Se alguém pensa que a destruição dos impérios que defendiam os povos dos egoísmos das elites nacionalistas era o remédio necessário ao tratamento das doenças do mundo, desengane-se. As trincheiras da guerra de 14/18, as atrocidades da guerra de 39/45, o sionismo e as guerras da Palestina e a confusão balcânica provaram que estavam errados. Agora, a invasão de Gaza, a confusão iraquiana, o desastre da Síria, a bomba adormecida dos Balcãs e o abate de aviões civis só provam que o remédio não foi eficaz e que cem anos é muito tempo para tratamentos!

A cínica observação de Putin de que nada disto (o abate de um avião civil) teria acontecido se houvesse paz na terra ou a pateta observação de um cientista bem intencionado que, não lhe bastando a morte de uma criança que fosse para condenar o abate, questionou com ar apalermado impróprio de um cientista, se a cura da sida não podia vir naquele avião, provam não só que o tratamento não resulta como tem levado à estupidificação de políticos e cientistas.

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Crónicas Gastronómicas IV - BITOQUE À SOGRO

 

Justamente o bife chegava, fumegante, chiando na frigideirinha de barro. (capítulo XVII de “Os Maias”, de Eça de Queiroz)

Nascido entre cafés e botequins mais ou menos aristocráticos, o bife de Lisboa depressa se democratizou transformando-se nas bifanas e pregos de arraiais e roulottes cuja fama alcançou mundo, coisa que comprovei quando, junto a um resto do muro que separava Berlim, na moderna Potsdamer platz, um estudante disfarçado de guarda do muro, para gáudio de turistas, me perguntou se por acaso não trazia escondida na mochila uma bifana de Lisboa.

            Tudo terá talvez começado quando um napolitano de nome Marrare decidiu abrir vários botequins e cafés numa Lisboa boémia que se afrancesava com a corte de Junot, que substituía a dos Braganças apreciadores de coxas de frango nas praias do Brasil.

Os estabelecimentos do Marrare estendiam-se desde o cais do Sodré, onde se serviam viajantes apressados, passavam pelo São Carlos, onde se combinavam pateadas e de onde Carlos da Maia viu pela primeira vez Maria Eduarda, e alcandoravam-se no Chiado alimentado a burguesia. Mas foi no Arco da Bandeira, ao Rossio, no Marrare das sete portas, que nasceu o bife alto e suculento envolto em natas. Depois veio o bife à café, do Nicola e do Tavares, onde as natas se substituem por leite e mostarda. Seguiram-se a cervejaria Jansen, a Taverna inglesa e mais tarde a Trindade e a Portugália. O império colonial fê-lo passar o equador e levou-o tão longe como ao Sul de África onde eu comia os bifes com o pomposo nome de bife à princesa em homenagem a uma neta da rainha Vitória que um dia visitou Lourenço Marques. Nos talhos servia-se uma versão mais popular, com fatia mais fina, às vezes de porco, temperado em sal e alho e frito em banha de porco. Quando alguém decidiu colocar-lhe um ovo frito a cavalo inventou o bitoque: o mais genuíno prato português de botequim, com carne que leva nome inglês.

            O meu sogro, cujo bitoque alcançou fama na cidade da Guarda, e que eu confirmei ainda antes de ele saber que lhe roubava a filha, tempera os bifes numa marinada de vinho branco, sal, pimenta, alho e piripiri, tudo rematado com folha de louro. Depois frita-os em banha, e antes mesmo que estejam prontos retira-os para uma frigideira de barro como no aristocrático Tavares, a fazer fé no Eça. Para as frigideiras de barro descia o meu sogro de propósito até Lisboa, ao bairro da Mouraria, para as comprar nas olarias que então ali existiam, herança de artesãos mouros expulsos de entre os muros da cidade.

Posto o bife no barro, vai ao lume com um pouco de manteiga e uma pinga de leite a formar molho com os sucos da carne. Assim fumegando e chiando, como diz o Eça, com um ovo estrelado a cavalo, servia este hábito lisboeta aos clientes da alta cidade da Guarda. Ao lado, acompanhando, as batatas fritas o arroz branco e os pickles.

            Se quiser aburguesar o prato faça como no Marrare. Não com o talher de prata como no célebre botequim, que o proletário bitoque estranharia o luxo, mas servindo as batatas fritas à parte, encapotadas em guardanapo de pano. As crianças no entanto acharão graça a uma cornucópia de papel!



sexta-feira, 4 de julho de 2014

APALACHES, AS NOVAS ASTÚRIAS?

 

“O ruir da Europa será o ruir de um dos mais extraordinários movimentos humanistas da história” – Cunha Rodrigues


Cegos pelos passes de Cristiano e de Messi no sertão brasileiro ainda não reparámos que o mundo está em efervescência nas nossas costas. Parece, quase de certeza diz alguém que sabe, que as ajudas em armamento e outros meios que o Ocidente dispensou aos rebeldes da Síria foram parar às mãos dos que agora querem tomar conta do Iraque para restabelecer o Califado. O próprio recrutamento para o desiderato faz-se nas ruas de Madrid por quem ali se recolheu vindo de Guantánamo, libertado graças ao trabalho generoso e cheio de boas intenções dos juízes espanhóis.

O Ocidente, e em particular a Europa, entrou em decadência, já se percebeu. Depois de termos criado uma sociedade um pouco mais justa e democrática, que outras culturas e tradições não lograram, envergonhamo-nos do nosso passado e já nem convicções temos. No deserto em que nos tornámos, transformam-se igrejas em bares, em museus e em bibliotecas. Espaço de lazer e de arquivo assim se vai tornando a Europa aproveitando a beleza criada por uma espiritualidade que já não tem. O emir do Qatar, homem que não se envergonha das suas fortes convicções, aproveita o vazio e tenta comprar a abandonada praça de touros de Barcelona para a transformar numa enorme mesquita. Este é o resultado de gente que tem da História a visão de Hollywood e que de Geografia conhece apenas os painéis de partidas e chegadas dos aeroportos. Sem perceberem onde ficam os Himalaias e o cabo da Roca, fronteiras do império islâmico conquistadas em menos de cem anos após a morte do Profeta Maomé, culpam a Europa cristã pelo pecado das cruzadas, desconhecendo que essa Europa à época, e setecentos anos após a morte de Cristo, ainda tinha o Norte do Báltico e o Leste do Danúbio por converter, revelando-se muito menos eficaz e guerreira do que o Islão. Se acrescentarmos a isto o facto de as cruzadas se terem iniciado somente trezentos anos após a chegada dos árabes aos Pirenéus percebemos a imensa boutade que é o pensamento que nos culpa de todos os males do mundo. Essa gente de boa vontade mas de espírito ingénuo, que vai dizendo que o Andaluz podia ser mais mourisco, esquece que Constantinopla/ Istambul era cristã e herdeira de Roma na mesma época em que o Andaluz deixou de ser mouro. O resultado dessa ignorância está à vista.

Assim como os visigodos partidários de Vitiza, sem perceberem o alcance do seu gesto, abriram as portas da Península aos Árabes para derrotarem Rodrigo, assim o nosso dinheiro, ajuda e distracção abre agora as portas a um novo Califado. O Atlântico não permitirá que façamos dos Apalaches as novas Astúrias pelo que ou a Europa se reinventa ou terá nome asiático nas próximas décadas.

Se alguma dúvida restasse, a homenagem que os sérvios acabaram de fazer ao homem que há cem anos foi o gatilho da primeira guerra mundial, diz bem do manicómio em que este continente se transformou.