sexta-feira, 14 de outubro de 2016

O PRÉMIO NOBEL DA LITERATURA, QUE HORROR!


Vai por aí um charivari por causa da atribuição do prémio Nobel da literatura a Bob Dylan, um escritor de canções populares. Uns porque não reconhecem qualquer valor literário ao cantor, outros porque, gostando muito do cantor, não acham que a sua categoria se encaixe em literatura, como se a Academia Sueca se tenha preocupado com a Literatura quando atribuiu o prémio a um historiador, Theodor Mommsen, já em 1902, só porque o homem escreveu a monumental História de Roma, ou a Winston Churchill por causa das suas memórias da 2ª Guerra Mundial.
Julgo que qualquer das facções, os que estão a favor e os que estão contra, estão pelo menos de acordo quando ambos erram na sua apreciação: os que estão contra porque Dylan é um “marginal”, e os que estão a favor porque precisamente acham que Dylan é um “marginal” e, por isso, uma pedrada no charco.
Dos grandes escritores, desde a antiguidade, é conhecida a sua propensão para a marginalidade. Bob Dylan ao pé de alguns dos maiores é um menino bem-comportado. Verlaine, Baudelaire e Rimbaud são grandes nomes da literatura francesa e não vos conto aqui os pormenores das suas vidas porque este é um blog decente e tenho propensão a corar. Dylan fumou umas coisas? O Camilo Pessanha, um dos nossos maiores poetas que viveu quando muitos de nós não éramos nascidos, morreu de uma overdose de ópio. Allan Poe, Baudelaire, fumavam e tomavam coisas que não lembram ao diabo. Nenhum dos que agora se insurgem contra a atribuição do prémio a Dylan se atreveria a convidar para almoçar (já nem digo jantar) o nosso poeta Bocage, o maior da língua portuguesa depois de Camões, estando presentes a esposa e as filhas. Já a presença de Dylan ao jantar despertaria a curiosidade e a intromissão das vizinhas a pedir autógrafos e nenhuma mancha cairia sobre a honra da casa. Pelo que faz muito bem a Academia em não se ralar com a maior ou menor marginalidade dos premiados. O prémio é pelo valor poético e não pelos cabelos compridos e o olhar de bêbado.
Vamos lá a ver. A cultura a ser premiada deve ser a forma erudita de produzir arte. Ora não é por Dylan cantar os seus poemas de uma forma popular que estes perdem o seu valor erudito. Amália cantou na forma popular do fado a erudição de Camões. A música de Dylan enquadra-se na arte popular e não erudita, mas os seus poemas, não tenho dúvidas, são fruto de uma erudição que demonstram conhecimento das estéticas artísticas da cultura dita não popular.
A poesia do rei David expressa-se nos belíssimos salmos, expressão literária do mais fino recorte que se pode ler na Bíblia. Eram todos cantados pelo próprio David que, ao que consta, não frequentou o conservatório (e já agora, um grande marginal que dançava nu pelas ruas). Os poemas de Dylan seguem assim o longo caminho trilhado desde a antiguidade, de cantar letras eruditas nas formas musicais populares. Foi assim com toda a trovadoresca provençal que nos deu as nossas cantigas de amigo e de amor e as cantigas de Santa Maria de Afonso X. Formas literárias eruditas cantadas em estrofes que vinham da tradição popular: a génese da nossa literatura são as cantigas. O primeiro registo literário da nossa língua é a cantiga de Paio Soares de Taveirós, chamada a “cantiga da Ribeirinha”, dedicada a uma cortesã (forma simpática de chamar prostituta), concubina do rei Sancho I.
O que interessa mesmo é saber se as “letras” do Dylan são ou não literatura, superior à História de Roma ou às biografias do Churchill. O melhor é lê-las e, para os mais sensíveis, esqueçam lá a gaita e a voz rouca e lembrem-se de que não é a primeira vez que um músico ganha o Nobel da Literatura (já aconteceu em 1913):

SAD EYED LADY OF THE LOWLANDS

With your mercury mouth in the missionary times,
And your eyes like smoke and your prayers like rhymes,
And your silver cross, and your voice like chimes,
Oh, do they think could bury you?
With your pockets well protected at last,
And your streetcar visions which you place on the grass,
And your flesh like silk, and your face like glass,
Who could they get to carry you?

Sad-eyed lady of the lowlands,
Where the sad-eyed prophet says that no man comes,
My warehouse eyes, my Arabian drums,
Should I put them by your gate,
Or, sad-eyed lady, should I wait?

With your sheets like metal and your belt like lace,
And your deck of cards missing the jack and the ace,
And your basement clothes and your hollow face,
Who among them can think he could outguess you?
With your silhouette when the sunlight dims
Into your eyes where the moonlight swims,
And your match-book songs and your gypsy hymns,
Who among them would try to impress you?

Sad-eyed lady of the lowlands,
Where the sad-eyed prophet says that no man comes,
My warehouse eyes, my Arabian drums,
Should I put them by your gate,
Or, sad-eyed lady, should I wait?

The kings of Tyrus with their convict list
Are waiting in line for their geranium kiss,
And you wouldn't know it would happen like this,
But who among them really wants just to kiss you?
With your childhood flames on your midnight rug,
And your Spanish manners and your mother's drugs,
And your cowboy mouth and your curfew plugs,
Who among them do you think could resist you?

Sad-eyed lady of the lowlands,
Where the sad-eyed prophet says that no man comes,
My warehouse eyes, my Arabian drums,
Should I leave them by your gate,
Or, sad-eyed lady, should I wait?

Oh, the farmers and the businessmen, they all did decide
To show you the dead angels that they used to hide.
But why did they pick you to sympathize with their side?
Oh, how could they ever mistake you?
They wished you'd accepted the blame for the farm,
But with the sea at your feet and the phony false alarm,
And with the child of a hoodlum wrapped up in your arms,
How could they ever, ever persuade you?

Sad-eyed lady of the lowlands,
Where the sad-eyed prophet says that no man comes,
My warehouse eyes, my Arabian drums,
Should I leave them by your gate,
Or, sad-eyed lady, should I wait?

With your sheet-metal memory of Cannery Row,
And your magazine-husband who one day just had to go,
And your gentleness now, which you just can't help but show,
Who among them do you think would employ you?
Now you stand with your thief, you're on his parole
With your holy medallion which your fingertips fold,
And your saintlike face and your ghostlike soul,
Oh, who among them do you think could destroy you?

Sad-eyed lady of the lowlands,
Where the sad-eyed prophet says that no man comes,
My warehouse eyes, my Arabian drums,
Should I leave them by your gate,
Or, sad-eyed lady, should I wait?

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