terça-feira, 26 de julho de 2016

OS TURCOS E OS GATOS


A única tirania que suporto é a que os meus gatos exercem sobre mim. Partilho com os muçulmanos este amor pelos gatos. Conta-se que o Profeta Maomé, que a paz e bênção de Alá estejam sobre ele, ao ouvir o chamamento à oração, cortou a manga das suas vestes para não incomodar o gato que adormecera sobre ela. Além do amor pelos gatos partilho com o Islão, o gosto pelo convívio da rua. Intriga-me a relação dos homens com a mesquita e com a oração, e o canto do muezzin no alto dos minaretes, maravilha-me. Entre mim e o Islão vai, no entanto, a diferença entre a carta aos Coríntios de S. Paulo (Tudo me é permitido, mas nem tudo é conveniente… 1 Cor 6, 12), a carta aos Romanos (É na nova existência do Espírito que somos servos e não na existência caduca da letra da lei. Rm 7,6) e a tirania da Charia.
Quando visitei Istambul fiquei maravilhado com os gatos da cidade. Há-os por todo o lado. Nas ruas mais movimentadas, nos cafés, nos museus, dentro da própria Hagia Sophia, nos cemitérios. Ao contrário do mundo católico, que pela pobreza de espírito de um Papa os associou à bruxaria, o mundo islâmico reconhece a nobreza do gato aparentado com o leão, a sua limpeza e o seu inestimável serviço como guardião de celeiros. O amor pelos gatos levou os turcos a fundar hospitais para os tratar. Seguindo o conselho de Mark Twain, outro amante de gatos, dispus-me logo a considerar os turcos como amigos e companheiros (quando um homem ama os gatos, torno-me de imediato seu amigo e companheiro sem precisar de qualquer apresentação).
Foi também por isso, pelo respeito aos turcos, amantes de gatos, que visitei o túmulo de Maomé II, o conquistador de Constantinopla, junto à mesquita de Fatih, apesar de representar, na História, “o inimigo”. No tempo em que o Islão era um elemento civilizador, Maomé II conquistou a última capital do velho império romano cujos defensores perdiam tempo discutindo o sexo dos anjos (como hoje). Ao entrar na Igreja de Hagia Sophia, deitou terra sobre o turbante em sinal de respeito. Depois, e sendo ele próprio descendente de princesas gregas, casou com uma fidalga grega (bizantina), deu cargos importantes aos sobrinhos e herdeiros do último imperador bizantino (seus potenciais opositores), chamou a população em fuga e nomeou o patriarca cristão ortodoxo, governador da cidade. Sendo já sultão dos muçulmanos, entendeu manter a grandeza de Roma autoproclamando-se César de Roma, soberano supremo dos cristãos. Não podia deixar de prestar a homenagem devida a tão grande homem. O Islão carece de homens assim. A cristandade (ou o ocidente) também.
Ao contrário de o conquistador de Constantinopla, que soube transformar inimigos em companheiros, Erdogan elimina inimigos e imagina opositores. O seu autoritarismo chega ao ponto de querer acabar com os gatos nas ruas de Istambul.
Erdogan não gosta de gatos!

imagem: cemitério dos monges derviche do mosteiro Mevlevi (sufi) em Galata (Istambul) 

quinta-feira, 21 de julho de 2016

QUEM PASSA POR ALCOBAÇA, NÃO PASSA PARA ROUBAR. OU PASSA?


Gosto muito de hotéis. E também de monumentos. Juntar hotéis e monumentos não é uma ideia nova em Portugal. Desde 1950 que o conceito de pousadas históricas existe com grande apreço da população e da crítica. O Smithsonian Foundation atribuiu às Pousadas de Portugal o prémio anual pelo papel preponderante na defesa do património cultural e do ambiente para fins turísticos.
O mosteiro de Alcobaça, com mais de 800 anos, tem um papel mais do que simbólico na fundação do nosso país, que é pouco reconhecido pelas autoridades e pela população em geral. Para lá da sua importância na fundação e defesa do Estado Português, é lá que está o símbolo maior do nosso amor: os túmulos de Pedro e Inês. Mas representa também o primeiro e, durante muitos anos, o único exemplar da arquitetura gótica. Para além do monumento, a presença dos seus monges na região deixou marcas na agricultura e na engenharia hidráulica.
A brancura das suas pedras, os seus vitrais sem cor, e a falta de ornamentação (se exceptuarmos os túmulos) convidam-nos à ascese. Esse ascetismo obrigou, em remodelações recentes, a uma envolvência exterior despida de ornamentos que não foi compreendida pela maior parte da população que gosta de jardins barrocos. Desconhece, a população e alguma elite, que aquela “limpeza” e despojamento fazem parte da matriz de Alcobaça assente na reforma cisterciense, resumida na sua legenda beneditina: ora et labora (reza e trabalha).
Obras de restauro e adaptação, sempre as houve. A cozinha de Alcobaça, que faz as delícias dos visitantes, não é, ao contrário do que se julga, medieval, mas do século XVIII. Instalar um hotel numa ala e claustro onde ninguém vai e onde ninguém está disposto a investir o dinheiro dos contribuintes, mesmo aqueles que agora rasgam as vestes em protesto, parece-me bem.
Se a Ordem de Cister, fundadora do mosteiro, era, e é, austera e despojada, um Hotel de 5 estrelas não pode sê-lo. 90 quartos de luxo numa terra pequena como Alcobaça só se garantem à custa do prestígio das pedras que os rodeiam e que são de todos nós. Andarmos a trabalhar para o lucro dos outros sempre com o Credo na boca, tal como os monges de Cister, não! Devemos lembrar que esses monges, para além de rezarem e de trabalharem, também pegavam em armas para expulsar os mouros que lhes roubavam as searas.

Pagar 5 000 euros anuais por aqueles claustros, o mesmo (ou menos) que para uma renda de casa familiar, parece-me um despojamento do Estado que deve merecer o nosso mais vivo repúdio, senão mesmo investigação criminal. É que me parece um roubo!

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Crónicas gastronómicas XI - GALINHA À CAFREAL


Porque hoje é dia da França que tem um galo como símbolo, tal como nós, e que ficou um pouco depenado, veio-me à saudade um dos pratos típicos da minha terra: galinha à cafreal.
Um dos alimentos mais comum em Moçambique é a galinha. De tal maneira que os técnicos dos caminhos de ferro que estudaram a ligação ferroviária para a Zâmbia, na zona de Tete, tendo unicamente aquela ave como sustento, lhe dedicaram um monumento que julgo que por lá estará ainda.
À cafreal porque feita por negros, tal como o golo que nos deu a vitória no Euro, e que deixou os franceses com um grande galo. Cafreal é uma palavra de origem semita que se referia aos agricultores que semeavam, escondendo a semente na terra. A palavra passou então a designar aquele que esconde ou cobre. Após o aparecimento do islão os árabes passaram a designar assim todos aqueles que recusavam a fé islâmica, nomeadamente os indígenas a sul do Sahara. Os portugueses, que conseguem confundir os franceses, julgaram que a palavra designava os negros, passando então para o português como referência àqueles e à zona de África por eles habitada. O termo em inglês tem, no entanto, uma significação mais racista e acintosa.
A galinha à cafreal é assim um churrasco feito à moda dos negros. Lembro-me de um criado, numa das praias de Inharrime (sul de Moçambique), que assava assim as galinhas, pintando-as, cheio de paciência, com uma pena molhada de azeite. Ficavam deliciosas. Na cidade comiam-se na cervejaria Laurentina, que julgo ainda existir. A interculturalidade da cidade de então obrigava a cervejaria a aceitar que os muçulmanos trouxessem as suas próprias galinhas, mortas de acordo com o preceito religioso, e assavam-nas então da maneira que trazia fama ao restaurante: vários bidons abertos ao meio cheios de brasas com uma rede por cima, no páteo do restaurante (não existia a ASAE). Lembro-me ainda de, em miúdo no mato, ir comprar galinhas ao terreiro de uma velha negra que as entregava vivas depois de lhes arrancar umas penas da cauda, para qualquer feitiço ou sortilégio que desconheço.
O segredo é de polichinelo. Sal, alho e piripiri ligados com azeite. Deixa-se repousar temperada para tomar o gosto e depois vai a assar na brasa. A temperatura das brasas é um segredo que só a experiência ensina. A suficiente para assar lentamente. Durante a assadura vai-se “pintando” com azeite e sumo de limão.

Uma curiosidade: a galinha, ou o frango, não se abrem pelo peito como se vê por aí, mas pelas costas, deixando que o peito fique inteiro. Convém bater um pouco com um martelo para que fique bem espalmada. Depois é só comer acompanhada de uma sagres ou superbock na falta da laurentina.

sábado, 9 de julho de 2016

ESTADOS UNIDOS DO FUTEBOL


Eu gosto da França e dos franceses. O seu chauvinismo é mais suportável que o dos ingleses porque não se julgam superiores, somente diferentes.
De francês tenho a costela de uma vaga trisavó, mas de inglês tenho a de uma avó de quem, curiosamente, herdei a costela vagamente francesa. Não ligo nenhuma ao futebol. Não herdei esse gosto nem pelo lado inglês nem pelo português. Mas amanhã estarei com o Cristiano Ronaldo, um português, um madeirense, um descendente de antigos trabalhadores vindos de África para as plantações de cana de açúcar do Infante. Estarei ao lado do Quaresma cuja tribo veio do Egipto ou da Índia, que importa? Estarei a gritar pelo Renato Sanches, trineto da rainha Ginga, pelo Cédric que é português nascido na Alemanha e podia ser da selecção alemã. Estarei também com Rui Patrício, um aqui da zona ocidental do país. Estarei com todos, do Minho a Timor que por lá também sofrem como nós.
Ganhe quem ganhar, haverá um português a erguer a taça. Poderá ser Ronaldo, mas também poderá ser Antoine Griezmann, que é filho de uma portuguesa e bisneto de alemães, e é francês. O seu avô jogou futebol no Paços de Ferreira. Antoine podia jogar na nossa selecção. Escolheu a da terra natal, e fez ele muito bem porque o azul da camisola combina muito bem com o azul cinzento dos seus olhos vagamente germânicos.

Vitor Hugo, não o guarda redes, mas o escritor francês, sonhou para o século XX os Estados Unidos da Europa para que a seguir se formassem os Estados Unidos do Mundo. Andamos aos tropeços, mas havemos de o conseguir. Afinal é o que já vemos nas selecções nacionais: Os Estados Unidos do Futebol.

terça-feira, 5 de julho de 2016

SONDA CHEGA A JÚPITER - O FIM DE UM DELÍQUIO AMOROSO


Todos sabemos que Júpiter, rei dos deuses, não é um exemplo de fidelidade. Sabemos também o que Juno, sua sempre fiel e dedicada esposa, sofreu com as infidelidades do marido castigando com rigor, e alguma violência, não fosse ela senhora das tempestades, algumas das inúmeras amantes do seu divino esposo. Júpiter muito amargou para esconder da mulher as suas aventuras, chegando ao ridículo de se transformar em touro, ou em cisne só para alimentar a luxúria. Galileu, num tempo em que o mundo era religioso, mas lúbrico e lascivo, colocou à volta do planeta as suas amantes Io, Europa e Calisto, não se esquecendo do jovem Ganimedes, que o deus gostava de ter por perto para todo o serviço, e ali estiveram sossegados em doce remanso até aos nossos dias. Jamais passaria pela cabeça de um clássico, de um medievalista ou de um renascentista, colocar a mulher de Júpiter a perscrutar-lhe o íntimo, antes preferindo oferecer ao planeta gigante a companhia de amantes.
Que a NASA tenha enviado para Júpiter uma sonda para lhe conhecer os segredos com o nome de Juno, perturbando assim aquele delíquio amoroso do grande planeta, mostra bem o espírito inquisitorial e pseudo moralista gerados na confusão pós modernista dos nossos tempos.
na imagem: Ganimedes com Júpiter disfarçado de águia

domingo, 3 de julho de 2016

SODOMA E GOMORRA - HOMOSSEXUALIDADE OU XENOFOBIA?



Uma certa direita que se revê em Trump e em Boris casa a sua aversão a emigrantes e refugiados com a aversão à homossexualidade. O curioso é que para fundamentar a aversão à homossexualidade costuma dizer que é uma aberração de tal ordem que mereceu a ira Divina contada na história de Lot, que popularmente é conhecida como Sodoma e Gomorra. A leitura atenta e historicamente fundamentada do livro do Génesis permite, a qualquer um que se livre da intoxicação que nos impuseram ao longo de séculos sobre a prática sexual dos homens de Sodoma e Gomorra, perceber que o verdadeiro pecado de Sodoma e Gomorra que foi exemplarmente castigado não era a homossexualidade dos seus habitantes, mas a ganância e a falta de caridade, de respeito, de acolhimento, de solidariedade para com o estrangeiro que procurava refúgio nas suas cidades.
Não deixa de ser irónico que o escândalo de Sodoma e Gomorra, que lhes fundamenta o ódio aos homossexuais, é afinal o seu próprio pecado pelo qual deviam temer a ira de Deus: o ódio ao estrangeiro.


Imagem: hermafrodita dormindo. Arte imperial romana, século II dC