sábado, 29 de outubro de 2016

O COMBOIO, UMA EFEMÉRIDE MEDÍOCRE



Quando era miúdo vi um filme com o António Calvário e a Madalena Iglésias que se chamava “Sarilho de Fraldas”. Já o Charlot tinha filmado estonteantes perseguições policiais, quando neste filme da década de 60, o polícia encarregado da perseguição ao fugitivo, que se escondera algures nas serras de Portugal, diz para o colega, na calma de um gabinete lisboeta e com um ar de extrema eficiência e determinação: - Ainda esta noite estarei no Carregado! Deixando o colega e os espectadores, atordoados pela velocidade vertiginosa e perigosa que o policial precisaria para chegar de Lisboa ao Carregado a tempo da ceia, enquanto o perigoso fugitivo (António Calvário) já se embrenhava por entre o Douro e Minho.
O policial cinematográfico deslocar-se-ia de carro, mas em 1856 poderia ter ido de comboio, pois foi o ano em que se inaugurou a primeira viagem de comboio em Portugal. Bastante atrasada em relação ao resto da Europa, atraso a que o Marquês de Pombal, já morto e enterrado há 74 anos, foi, de certo modo, responsável (um dia explico porquê). O Carregado é assim a fronteira simbólica da interioridade portuguesa (e da sua mediocridade).
A construção da via férrea entre Lisboa e o Carregado durou três anos, a uma média de 12 km por ano, e terminou 11 anos depois de se ter decidido contruir a via férrea. Por que razão se escolheu Lisboa e o Carregado é algo para mim incompreensível. Antes do comboio, as mercadorias saltavam montes e vales, atascando-se na lama dos caminhos, para chegar ao Carregado onde depois embarcavam e desciam suave e seguramente o Tejo até Lisboa. Depois da inauguração do comboio as mercadorias continuaram a saltar montes e valas e a atascarem-se na lama dos caminhos para chegar ao Carregado para depois descerem até Lisboa aos solavancos, poluindo a zona ribeirinha com o fumo do carvão que substituía o vento nas velas dos barcos do Tejo. A linha férrea deveria ter começado sempre pelo Norte (Porto, estou contigo, mas é só desta vez). Na moderna Inglaterra foi por Manchester e Liverpool que começou e não por Londres.
No dia 26 de outubro de 1856, faz agora 160 anos, a viagem de 36.5 km entre Lisboa e o Carregado durou 40 minutos a uma estonteante velocidade de 54 km/hora. A volta foi mais complicada, tendo que se fazer em duas viagens porque as locomotivas envolvidas no processo recusaram-se a arrastar tanta gente depois de um lauto banquete que correu muito bem, como nestas coisas sucede sempre (correrem muito bem os banquetes). Pela noitinha, já burgueses e realeza descansavam em suas casas de toda a excitação provocada pela incursão “ao interior” do país. A história não relata se houve ou não ataques de índios ferozes e ululantes, ou de negros liderados pelo régulo Mawewe, tio do Gungunhana, mas creio que não, que a população da beira rio é pacífica por natureza.
Na Rússia, um país bastante atrasado em relação à Alemanha e Inglaterra, há muito que se viajava de comboio, e cinco anos antes da viagem ao Carregado, já se podia percorrer por caminho de ferro os 713 km que separam Moscovo de San Petersburgo, distância maior que a que separa a ria Formosa do rio Minho.
Não me apetece nada comemorar uma efeméride que denuncia a estupidez de tantas decisões tomadas em gabinetes onde despontam carreiristas que não vêm além do seu ventre, desde o tempo do Fontes até aos dias de hoje, com honrosa excepção para o mesmo Fontes. Se duvida, leia os últimos episódios sobre este país de licenciados (e a-mestrados), a substituir os bacharéis do Eça. Um deles tinha motorista para o levar diariamente, não ao Carregado, mas a S. Martinho do Porto, onde o comboio para mesmo na praia.
Não comemoro a efeméride porque duvido que consiga chegar a tempo ao Carregado!

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

O PRÉMIO NOBEL DA LITERATURA, QUE HORROR!


Vai por aí um charivari por causa da atribuição do prémio Nobel da literatura a Bob Dylan, um escritor de canções populares. Uns porque não reconhecem qualquer valor literário ao cantor, outros porque, gostando muito do cantor, não acham que a sua categoria se encaixe em literatura, como se a Academia Sueca se tenha preocupado com a Literatura quando atribuiu o prémio a um historiador, Theodor Mommsen, já em 1902, só porque o homem escreveu a monumental História de Roma, ou a Winston Churchill por causa das suas memórias da 2ª Guerra Mundial.
Julgo que qualquer das facções, os que estão a favor e os que estão contra, estão pelo menos de acordo quando ambos erram na sua apreciação: os que estão contra porque Dylan é um “marginal”, e os que estão a favor porque precisamente acham que Dylan é um “marginal” e, por isso, uma pedrada no charco.
Dos grandes escritores, desde a antiguidade, é conhecida a sua propensão para a marginalidade. Bob Dylan ao pé de alguns dos maiores é um menino bem-comportado. Verlaine, Baudelaire e Rimbaud são grandes nomes da literatura francesa e não vos conto aqui os pormenores das suas vidas porque este é um blog decente e tenho propensão a corar. Dylan fumou umas coisas? O Camilo Pessanha, um dos nossos maiores poetas que viveu quando muitos de nós não éramos nascidos, morreu de uma overdose de ópio. Allan Poe, Baudelaire, fumavam e tomavam coisas que não lembram ao diabo. Nenhum dos que agora se insurgem contra a atribuição do prémio a Dylan se atreveria a convidar para almoçar (já nem digo jantar) o nosso poeta Bocage, o maior da língua portuguesa depois de Camões, estando presentes a esposa e as filhas. Já a presença de Dylan ao jantar despertaria a curiosidade e a intromissão das vizinhas a pedir autógrafos e nenhuma mancha cairia sobre a honra da casa. Pelo que faz muito bem a Academia em não se ralar com a maior ou menor marginalidade dos premiados. O prémio é pelo valor poético e não pelos cabelos compridos e o olhar de bêbado.
Vamos lá a ver. A cultura a ser premiada deve ser a forma erudita de produzir arte. Ora não é por Dylan cantar os seus poemas de uma forma popular que estes perdem o seu valor erudito. Amália cantou na forma popular do fado a erudição de Camões. A música de Dylan enquadra-se na arte popular e não erudita, mas os seus poemas, não tenho dúvidas, são fruto de uma erudição que demonstram conhecimento das estéticas artísticas da cultura dita não popular.
A poesia do rei David expressa-se nos belíssimos salmos, expressão literária do mais fino recorte que se pode ler na Bíblia. Eram todos cantados pelo próprio David que, ao que consta, não frequentou o conservatório (e já agora, um grande marginal que dançava nu pelas ruas). Os poemas de Dylan seguem assim o longo caminho trilhado desde a antiguidade, de cantar letras eruditas nas formas musicais populares. Foi assim com toda a trovadoresca provençal que nos deu as nossas cantigas de amigo e de amor e as cantigas de Santa Maria de Afonso X. Formas literárias eruditas cantadas em estrofes que vinham da tradição popular: a génese da nossa literatura são as cantigas. O primeiro registo literário da nossa língua é a cantiga de Paio Soares de Taveirós, chamada a “cantiga da Ribeirinha”, dedicada a uma cortesã (forma simpática de chamar prostituta), concubina do rei Sancho I.
O que interessa mesmo é saber se as “letras” do Dylan são ou não literatura, superior à História de Roma ou às biografias do Churchill. O melhor é lê-las e, para os mais sensíveis, esqueçam lá a gaita e a voz rouca e lembrem-se de que não é a primeira vez que um músico ganha o Nobel da Literatura (já aconteceu em 1913):

SAD EYED LADY OF THE LOWLANDS

With your mercury mouth in the missionary times,
And your eyes like smoke and your prayers like rhymes,
And your silver cross, and your voice like chimes,
Oh, do they think could bury you?
With your pockets well protected at last,
And your streetcar visions which you place on the grass,
And your flesh like silk, and your face like glass,
Who could they get to carry you?

Sad-eyed lady of the lowlands,
Where the sad-eyed prophet says that no man comes,
My warehouse eyes, my Arabian drums,
Should I put them by your gate,
Or, sad-eyed lady, should I wait?

With your sheets like metal and your belt like lace,
And your deck of cards missing the jack and the ace,
And your basement clothes and your hollow face,
Who among them can think he could outguess you?
With your silhouette when the sunlight dims
Into your eyes where the moonlight swims,
And your match-book songs and your gypsy hymns,
Who among them would try to impress you?

Sad-eyed lady of the lowlands,
Where the sad-eyed prophet says that no man comes,
My warehouse eyes, my Arabian drums,
Should I put them by your gate,
Or, sad-eyed lady, should I wait?

The kings of Tyrus with their convict list
Are waiting in line for their geranium kiss,
And you wouldn't know it would happen like this,
But who among them really wants just to kiss you?
With your childhood flames on your midnight rug,
And your Spanish manners and your mother's drugs,
And your cowboy mouth and your curfew plugs,
Who among them do you think could resist you?

Sad-eyed lady of the lowlands,
Where the sad-eyed prophet says that no man comes,
My warehouse eyes, my Arabian drums,
Should I leave them by your gate,
Or, sad-eyed lady, should I wait?

Oh, the farmers and the businessmen, they all did decide
To show you the dead angels that they used to hide.
But why did they pick you to sympathize with their side?
Oh, how could they ever mistake you?
They wished you'd accepted the blame for the farm,
But with the sea at your feet and the phony false alarm,
And with the child of a hoodlum wrapped up in your arms,
How could they ever, ever persuade you?

Sad-eyed lady of the lowlands,
Where the sad-eyed prophet says that no man comes,
My warehouse eyes, my Arabian drums,
Should I leave them by your gate,
Or, sad-eyed lady, should I wait?

With your sheet-metal memory of Cannery Row,
And your magazine-husband who one day just had to go,
And your gentleness now, which you just can't help but show,
Who among them do you think would employ you?
Now you stand with your thief, you're on his parole
With your holy medallion which your fingertips fold,
And your saintlike face and your ghostlike soul,
Oh, who among them do you think could destroy you?

Sad-eyed lady of the lowlands,
Where the sad-eyed prophet says that no man comes,
My warehouse eyes, my Arabian drums,
Should I leave them by your gate,
Or, sad-eyed lady, should I wait?

terça-feira, 11 de outubro de 2016

MAS EM ALEPPO...



Um homem que pilota aviões matou. Foi decretado o recolher obrigatório a três pequenas aldeias da Serra da Freita tal qual no Mundo que se vê nas notícias. Os táxis chateiam-se com os Uber (ladrão que rouba a ladrão…). Um taxista falou qualquer coisa sobre a violação das virgens e o mundo escandalizou-se com este Trump da rotunda do relógio. Marcelo condecora o rei de Marrocos e o Estado Islâmico insulta-os (com a ordem de Santiago? Não havia necessidade…). Enquanto o matador não for preso os aldeões não podem sair porque está frio e é noite e é recolher obrigatório. Saí eu e fui ver: chuviscava. O Outono aí está e a ordem regressará pouco a pouco: nem um táxi se vê e as minhas couves já não são galegas e dão brócolos!
Mas em Aleppo…

terça-feira, 4 de outubro de 2016

O PECADO DA IGREJA É SALVAÇÃO PARA MUITOS ou como se vende uma Bíblia sem bênção


Conheço alguém que professou numa igreja evangélica com a entrega, fervor e maniqueísmo, que por vezes caracteriza aqueles que abandonam a tradição das suas crenças pela novidade de outras. Com o mesmo fervor com que entrou, saiu. Crente que os livros sagrados são a palavra inviolável de Deus, não resistiu quando soube que uma tradução do Novo Testamento para a língua que os esquimós falam, feita pela sua Igreja, substituíra a palavra camelo por foca. A razão era simples: os esquimós não conseguiriam perceber a célebre parábola sobre a dificuldade que os ricos têm em penetrar no reino dos céus pela simples razão que não faziam ideia de como era um camelo, mas percebiam perfeitamente das dificuldades que uma foca teria para passar pelo buraco de uma agulha, apesar de continuarem sem perceber o que era um rico.
Assim parece estar Frederico Lourenço que se propõe a traduzir a Bíblia no seu significado textual, contrário às traduções das igrejas cristãs que nos “escondem” que pecado é afinal erro, e servo não passa de um escravo. Quer nos ver gregos por causa do mau latim que diz que pecado é um erro na forma popular, mas a culpa é sempre a mesma, ao contrário do que dizem que Lourenço diz, que há erro sem culpa, só porque não é pecado. E eu dou graças a Deus por ter sido Aquilino Ribeiro a traduzir Xenofonte e não Frederico Lourenço, para que a “Retirada dos Dez Mil” possa ser lida pelo mais saloio porque está traduzida para o genuíno vernáculo pecaminoso das ruas de Lisboa, passando por cima dos errores da língua grega, permitindo que Xenofonte diga “que ando a armar-vos uma estrangeirinha”, coisa que Frederico Lourenço jamais admitiria (que armou uma estrangeirinha).
Tal como os esquimós não entendem um camelo, nem um rico, também o povo leitor da Bíblia não entende que o escravo da antiguidade clássica não é o são tomense Rei Amador, nem o negro Jim do Tom Sawyer, por isso a Igreja lhe chamou servo e não escravo, para evitar confusões que não esclarecem. E porque elaborar no erro tem as suas consequências, sobem-me da mesma forma os triglicéridos quando incorro no erro de repetir a “mão de vaca” mesmo que recuse chamar-lhe pecado da gula. É que os triglicéridos, como a culpa, não perdoam!
Como o Xenofonte do Aquilino, digo que isto não passa de uma estrangeirinha dos media e das editoras, que o autor é mais sério que isso. É que não há melhor forma para o sucesso da venda de um livro, do que clamar alto e bom som que o mesmo vai revelar algo que a Igreja quis esconder, antes que descubram que afinal sempre esteve desvelado. O pecado (ou o erro?) da Igreja é salvação para muitos!
Eu espero comprar a Bíblia que Frederico Lourenço vai traduzir. O meu leitor faça o mesmo. Para benefício das letras e da nossa erudição. Mas não caia na esparrela dos jornais, de pensar que vai descobrir que os reis magos não eram três, que o burro e a vaca somos nós todos, e na manjedoura está o nosso alimento. Isso vai ter de descobrir por si.

(só para os mais novos: estrangeirinha é uma expressão típica de Lisboa, desconhecida dos clássicos gregos que não conheciam as coristas espanholas dos nossos cabarés, e que significa artimanha para lograr, tranquibérnia, velhacaria).