Por via
da necessidade aumentada que lhe bateu à porta, uma mulher acende todas as
semanas o velho forno que tem na aldeia e coze pão, bolos e pão com chouriço, e
é ver-nos a fazer bicha (não sou brasileiro) para lhe comprar o pão e os bolos.
É que o dito cujo, cinco dias depois continua tão fresco como no dia em que o
compro, por artes que só a padeira conhece.
A
padeira foge aos impostos e nem sabe qual o lucro que tem, desde que dê para os
medicamentos, e vende tudo a um euro, que facilita os trocos. É por isso que
esta coisa de chamar portuguesa a uma loja amaricada em elegâncias, e a
aparecer na televisão, para vender um alimento que se faz a murro, me passa
completamente ao lado.
A tal
padeira nem Facebook tem…, mas uma autêntica padaria portuguesa!
A
eleição de Donald Trump já teve como consequência o alastramento da idiotice de
forma semelhante ao vírus da gripe. O facto de o homem poder vir a revelar-se
um dos piores presidentes que a América teve, senão o pior, não torna Obama o
melhor, como por aí já se vai lendo e escrevendo (não nos esqueçamos nunca que
foi a abstenção da “esquerda” que pôs Trump na Casa Branca). E depois vem o
clamor contra o nepotismo, a relação com as mulheres, o mau gosto, a falta de
dons de oratória…, etc. Como se Kennedy (esse sim, um dos melhores presidentes,
diversas vezes posto à prova) não tivesse sido o campeão do nepotismo, das
dúvidas sobre as origens da fortuna familiar e dos escândalos sexuais.
Falar
das coisas acessórias só serve para desviar a atenção das essenciais. A má
educação de Trump, a falta de cavalheirismo para com a mulher (que sabia muito
bem com quem casava), as amantes ou supostas amantes, o mau gosto, a fortuna
duvidosa, são acessórios que não o fazem, necessariamente, um mau presidente,
como o oposto não fizeram um bom, apesar do que se diz. Há coisas demasiado
importantes e perigosas na forma de fazer política de Trump que deviam merecer
a nossa melhor atenção. O resto é matéria para desviar atenções, não se vá dar
o caso de se descobrir que Trump partilha algumas ideias da esquerda bem-pensante
(anti-NATO, anti-Europa, nacional é que é bom…). Menosprezar Trump e trata-lo
como mentecapto será a pior das atitudes para quem o quer combater,
beneficiando-o aos olhos dos americanos que não leem a imprensa europeia e nova
iorquina, e que são a maioria.
Uma das
ideias de Trump que lhe tem valido maiores ataques é a do muro na fronteira
entre os EUA e o México. Enche-se a boca com comparações com outros muros,
nomeadamente o de Berlim, como se os muros de uma fortaleza se comparassem aos
de uma prisão! O muro na fronteira com o México é uma ideia que começou com
Clinton, concretizada em parte por Bush. Um terço daquela fronteira está já
murado com a aprovação de Obama e Clinton. Só o excessivo custo do mesmo, para
que se torne eficaz, tem impedido a sua concretização. Foi o dinheiro que
impediu a sua construção e não as boas intenções dos “bons” presidentes que
nunca deixaram de o querer construir. Por isso Trump enche a boca com a boutade de que serão os mexicanos a
pagá-lo, valendo-lhe o ódio dos críticos que ainda não tiveram olhos para ver o
que já se construiu, enquanto se esquecem que em Melilla mantemos um forte muro
para proteger a Europa de imigrantes indesejáveis.
Não me
parece que a solução para o problema migratório do México para os EUA passe
pela construção de um bom ou mau muro, mas este será certamente muito mais
barato e mais fácil do que as políticas necessárias para a resolução do
problema, desde logo libertar o México do absoluto controlo dos barões da
droga, e nisso têm os EUA o principal papel (leia-se o que Bolaño escreveu
sobre o assunto). Se Trump conseguisse (e quisesse) resolver esse problema
tornar-se-ia certamente num dos melhores presidentes dos EUA, apesar do mau
gosto, dos escândalos e da “grunhice”.
Trump
será um mau presidente por causa do ambiente, do Médio Oriente, do voluntarismo
irracional, do proteccionismo, da falta de apoio aos mais necessitados, da
desregulação das empresas, da tortura, das listas e da corrida ao armamento. A
construção de um muro é o menor dos problemas e pouco afectará a vida dos
mexicanos e dos americanos, para além do desbaratamento do erário público,
enquanto que o proteccionismo, que deixará os sindicatos americanos contentes e
muita gente deste lado do mar a concordar com a cabeça, será terrível para os países
periféricos como o México e que dependem do mercado americano.
Passos Coelho tem
razão quando diz que não tem de ser muleta do governo: Costa propôs-se a
governar desprezando o apoio do PSD e negando-lhe o apoio para que governasse,
aliando-se com partidos que têm da economia e da Europa ideias que se
distanciam das do PS como Fátima de Meca. É justo que peregrine agora sozinho,
escolhendo o santuário que mais lhe convém. (A referência a Fátima nada tem a
ver com o facto de a Câmara de Ourém poder agora fazer obras de milhões de
euros por ajuste directo só porque o Papa Francisco se lembrou de a visitar em
ano de eleições, quando todos sabem que é preciso preparar a rotunda dos
pastorinhos para resistir às invectivas do padre Mário da Lixa e do músico
Pedro Barroso).
Passos Coelho é incoerente porque recusa agora
uma medida que antes adoptou. Incoerência, aliás, igualzinha à de Costa que
agora propõe uma medida que, em concertação com a esquerda, disse que não
tomaria, fiando-se que podia ter parceiro com quem recusara concertação. Não
fosse a falta de jeito de um e o atrevimento de outro e diríamos que foram
separados à nascença.
A diferença entre um
e outro está na comunicação e na apresentação, ou não vivêssemos nós numa
sociedade do espetáculo, onde o primeiro-ministro assume por inteiro a presença
cénica de um corifeu, por isso Coelho lhe chamou “encantador de serpentes”, sem
nenhuma alusão irónica às suas origens ou aos turbantes. Mas tal como no teatro
o actor mais experimentado engole os outros, Passos arrisca-se a ser servido à la sauce moutarde: querendo fugir do
charme do encantador, deixa-se engolir pela serpente, descobrindo, tarde
demais, que serpente e encantador são um só.
Preserva-te
da linguagem enganosa, afasta de ti a maledicência. (provérbios
4, 24)
Conheço bem os
retornados porque sou um deles. E, como eles, vivi durante o tempo que estudei
em quartos de pensões pagos pelo IARN. Porque era muito jovem ao tempo da
descolonização, tinha um mundo a conquistar e nada a perder (nunca esperei
heranças), ao contrário dos que, mais velhos, se viram forçados a deixar os
frutos de uma vida de trabalho. Ficou para sempre a mágoa dessa gente espoliada
de tudo. Mas o que doeu mais, o que ainda dói, não foi a perda mas o ganho do
título de colonialistas, racistas, exploradores dos pretos, por quem morriam os
jovens da pátria. Isso dói. E dói mais porque é falso. E no topo dos que nos
acusam e acusaram, os retornados colocaram Mário Soares, só porque este quis
fazer a descolonização a toda a velocidade e, como diz o povo, “cadelas
apressadas parem cães cegos”.
Mas é injusto que se
culpe Mário Soares dos erros da descolonização e que foram pagos, convém
lembrar, não só pelos retornados mas sobretudo pelas populações das ex-colónias
que viveram terríveis guerras civis em consequência da péssima descolonização.
Se tivéssemos exército que garantisse outra opção, então a pressa de Mário
Soares teria sido criminosa, como criminosos foram Salazar e Caetano que não
quiseram negociar quando tínhamos força para o fazer. O exército retirou-se
para os quartéis e para os gabinetes da política. Aquilo que podia ser uma má
opção transformou-se na única saída, e os retornados são por isso injustos com
Mário Soares.
(Sobre tubarões e
bandeiras pisadas, rasgadas ou queimadas, não me pronuncio porque é assunto, ou
da ciência biológica marinha ou da psiquiatria. Quanto a dentes de elefantes
capazes de derrubar um frágil Cesna, lembro aos incautos e amantes de teorias
da conspiração que naquele avião que descolou da Jamba viajavam representantes
do PS, do PSD e do CDS. Desconheço se haveria dentes para todos).
Então o que é que eu
devo a Mário Soares? O 25 de Abril não, que Soares não foi tido nem achado.
Devo-lhe somente a coragem de ter pegado o bicho pelos cornos, transformado um
golpe numa revolução que restaurou a ordem constitucional de uma república
democrática, pluripartidária e com liberdade de expressão e opinião, coisas que
corriam o risco de se perderem em derivas totalitárias. Qualquer homem livre,
de qualquer partido, deve isso a Soares, principalmente os da área da Direita democrática
que não deviam esquecer o papel impulsionador que Soares teve para a formação
em Portugal de uma moderna Democracia Cristã que, com a Social Democracia, é a
cofundadora do projeto europeu e do Estado Social. A ele se deve a nossa
entrada na Europa, que é o sítio onde eu quero e sempre quis viver. Tudo isso,
e não é pouco, lhe devo.
Soares estava longe
de ser um santo. Era delegante, desbocado, malcriado, mimado, com tiques de
sibarita (como eu), péssimo em finanças, mau governante, mas era alegre,
franco, optimista e leal. Discordei muitas vezes dele, e outras tantas me
irritei com a sua truculência, mas no fim estava quase sempre certo e eu não. Se
lhe reconheço os pecados, reconheço-lhe também as virtudes. Se pouca gente
esteve nas ruas a prestar-lhe homenagem nos seus funerais é sinal que o Povo
tem as conquistas que ele ajudou a alcançar como garantidas. Mera ilusão. Por
isso as honras de funerais de estado, para além de merecidas, são necessárias,
a nós que estamos vivos, não aos mortos.