A primeira vez que vi um El Greco chorei.
Foi no palácio de Sternberg em Praga. Numa das salas,
ao fundo, um pequeno quadro enchia o espaço ofuscando os Bruegel e outros de quem esqueci o nome. Não era o Salvador de Toledo, que nos fixa nos
olhos, mas um Cristo jovem que olha com amargura o Céu. Anos mais tarde haveria
de me embriagar em Toledo com o grego,
mas ali, ainda inocente, chorei.
Como disse, em Toledo foi um inebriamento com Greco: se a modernidade do Enterro do Conde de Orgaz me fez pairar
sobre o chão do átrio da igreja de São Tomé, o que direi daquela bandeira que cobre o corpo do
martirizado e que inunda a sacristia da catedral com gritos de vermelho?
A inocência no entanto esvai-se e com ela a
capacidade de deslumbramento. Perdida a inocência, ainda me deslumbro aqui e
ali, no Prado, em Orsay, na espiritualidade de Bach ou sofrendo com Isolda.
São assim os meus deslumbramentos. Com as obras dos
homens, não com os autores, que são fracos. Alguns, na sua fraqueza, produzem obras
primas como a que nos deslumbra na sacristia da catedral de Toledo: o pintor, que
com excessivo pudor beato criticava os nus de Miguel Ângelo, cegou-nos com
aquele clarão escarlate da túnica sem costura de Cristo.
Por isso ainda me surpreende o caso dos ludibriados
por Baptista Silva: ver homens adultos a quem a inocência há muito deveria ser
palavra esquecida, que em vez das obras se deslumbram com
as medalhas, as condecorações, os diplomas (merecidos ou comprados) e os cargos
de qualquer luminária que se ponha em bicos de pé, como se fossem garantia da
obra que nunca viram, é coisa que ainda me consegue espantar.
Ver as nossas elites
beberem sofregamente as palavras de um qualquer Dulcamara (udite, udite, o rustici…), sem repararem que não diz mais do que o
motorista do táxi que os trouxe, deve ser a causa da amargura naquele rosto de
Cristo em Praga.
Que o deslumbramento do fogo de artifício do réveillon não vos cegue ao essencial da
vida. Um bom ano.
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