quarta-feira, 24 de abril de 2013

O 25 DE ABRIL E O HOSPITAL DAS CALDAS

 
Estava há menos de um mês de fazer dezassete anos e acabava o curso da secção preparatória da escola industrial, o equivalente ao 11 º ano dos dias de hoje, ou o antigo 7º ano dos liceus, quando se deu o 25 de Abril. Em Moçambique, onde vivia, a notícia tardou em chegar (o governo da colónia encarregou-se de a ocultar tanto quanto pôde) e esta viria através dos media sul-africanos. Por razões que não me ocorrem, estava nesse dia em casa, sem aulas, e pela hora do almoço o meu pai trouxe a notícia de que algo se passava em Lisboa. Corremos para o rádio tentando sintonizar uma antena sul-africana.
-                  Prenderam o Marcelo Caetano! – aquelas palavras soaram-me de tal forma estranhas, como se o mundo se tivesse virado do avesso. Como era possível a tropa prender o presidente do conselho de ministros? Os anos de ensino da ordem estabelecida pelo Estado Novo, e a completa impreparação política faziam-se sentir no esplendor da minha ingenuidade de adolescente. Nem o conhecimento das cabeças cortadas de Luís e Antonieta, nem a fotografia de José Relvas, nos livros de história, saudando a República da varanda do município de Lisboa, conseguiam romper aquela certeza incutida da sacralização de quem detinha o poder.
Hoje, felizmente, um jovem de dezasseis anos sabe que um primeiro-ministro pode ser derrubado à boca das urnas ou por consequência da revolta nas ruas. Sabe também que pode insultá-lo na rua, bastando manter uma distância razoável dos seus seguranças e da polícia, e completamente à vontade nas redes sociais. O que ainda não sabe é que em democracia se respeitam as pessoas e contestam as ideias. Não sabe o adolescente e não sabem muitos dos que emitem opinião nos jornais, na televisão e na internet. Passados 39 anos, não se admite que quem pensa diferente de nós quer o mesmo que nós: o bem viver da polis; embora escolha caminhos diferentes.
É a Câmara Municipal, conjuntamente com a junta de freguesia e assembleia municipal, a instituição que mais próxima está das populações e a que encontra maior equilíbrio entre a democracia representativa e a democracia directa. Foi a força dos municípios que desde a fundação do reino permitiu que as populações tivessem voz junto do rei, fugindo à lógica feudal. Inventar outras formas de representatividade mais ou menos directa é causar divisão e confusão.
É por isso que não compreendo que nesta cidade de Caldas da Rainha de onde escrevo, se denigra essa instituição e as pessoas que para ela foram livre e democraticamente eleitas, porque não pensam da mesma maneira. É preciso outra participação e outra crítica que não passe pela funalização das instituições.
Não compreendo que a hipótese de se conceder ao município a gestão de um hospital termal, cuja história se confunde de tal forma com a cidade que até a data solene da sua abertura foi tornada feriado municipal, seja contestada somente porque não se concorda com a orientação dada à gestão da coisa municipal, esquecendo que as pessoas passam e as instituições ficam.
Este ano, graças a uma quinta-feira igual à de hoje, haverá eleições livres e democráticas para a gestão municipal. Não acredito que algum partido ou grupo de cidadãos se possa apresentar à eleição de um órgão negando à partida a excelência e a capacidade desse órgão em assumir a gestão da primeira instituição da cidade. Bem sei que pode ser um presente envenenado, mas cabe às instituições da cidade zelar pelo respeito ao compromisso da rainha D. Leonor e exigir do governo o cumprimento do Serviço Nacional de Saúde dentro do hospital termal. Cabe-nos exigir das instituições esse zelo e apoiá-las no que for necessário, esquecendo quezílias partidárias.


quarta-feira, 17 de abril de 2013

O QUE TEM A VER CAMILO LOURENÇO COM A NONA SINFONIA

Dedicado ao comentador de economia, Camilo Lourenço, que disse, em nome da eficácia e da eficiência, não ser necessário que as universidades dessem cursos de história.
 
Obrigado a contragosto a proceder a avaliações de acordo com os modernos critérios da boa gestão, consegui aprender entre dois bocejos que a eficácia é tanto maior quanto melhor se atinge um objectivo e a eficiência está na razão inversa dos meios utilizados para chegar ao mesmo objectivo.
Influenciado pelos tudólogos que todos os dias nos entram em casa pela tv, conhecedores de tudo e de coisa nenhuma, que nos tentam ensinar como sair da crise quando teria sido bem melhor que nos tivessem ensinado a não entrar nela, resolvi, em nome da eficácia e da eficiência a que esta crise nos obriga, fazer a avaliação de dois trechos musicais.
Assim, se entendermos que um trecho musical tem como objectivo atingir a parte mais sensível da alma humana, coisa que os filisteus afirmam estar entre o estômago e o coração, comprovado pelo facto de quando a parte sensível da alma se estica sentimos um nó no estômago e um aperto no coração, podemos então classificá-lo de acordo com aqueles critérios.
Escolhi para a experiência dois conhecidos temas musicais: a Ave Maria de Gounod e a celebérrima nona sinfonia de Beethoven, ou mais concretamente a “Ode à Alegria”. As conclusões são assustadoramente estranhas.
Quando o senhor Carlos Gounod ouviu pela janela o prelúdio em dó maior de Bach, que um músico de rua, acompanhado de um macaco, fazia soar dando à manivela de um realejo, lembrou-se de se pôr a meditar no assunto e desenhou, sobre a estrutura rítmica e harmónica do prelúdio, uma linha melódica simples que tocasse a parte mais sensível da alma humana. O objectivo foi integralmente cumprido.
Se é casamento lá estão a mãe da noiva e as tias a comprovarem-no, ensopando quantos lenços de papel conseguem encontrar e a dona Maria fica especialmente comovida quando a cantora grita - MARRÍA, MARRÍA, porque lhe faz lembrar a patroa. Se é funeral até o pior inimigo do defunto decide atirar uma mão cheia de terra sobre o féretro ao ouvir o in hora mortis nostrae.
É peça de eficácia garantidíssima e, como dona Constança, não há festa nem festança onde não esteja. No México é obrigatória na missa de quinceañera de qualquer menina que se preze e é sucesso garantido num encontro amoroso onde, por pudor, se deve trocar a cantora ou cantor por um violinista, húngaro de preferência. Se a troca for por moça ou moço de ar angelical com uma flauta nos beiços, pode então ser ouvida por protestantes, hindus, muçulmanos, budistas ou ateus. Como prece à virgem é de efeito garantido antes e depois de uma avaliação da troika. É, portanto, de uma eficácia a toda a prova.
Quanto à “Ode à Alegria”, integrada na nona sinfonia, a que chamam coral por acabar com um monte de gente aos berros, também tem o seu grau de eficácia garantido para atingir o objectivo de tocar na parte sensível da alma de qualquer humano mais obtuso, embora em menor grau do que a Ave Maria do Gounod. É que a nona, ou mais concretamente o pequeno excerto do seu quarto andamento que constitui a “Ode à Alegria”, pode ser ouvido em qualquer lado, desde um estádio de futebol ao parlamento europeu, mas não é costume cantar-se em casamentos embora não ficasse deslocado num divórcio. Em encontros amorosos também não dá muito jeito (até para uma orgia é demasiada gente), embora o Alex da Laranja Mecânica gostasse de fazer sexo ao som do segundo andamento da nona, mas gostos não se discutem.
Temos portanto as duas obras bem classificadas do ponto de vista da eficácia. Isto é, têm ambas sucesso para atingir a tal parte sensível da alma, entre o estômago e o coração.
E quanto à eficiência? O tal critério que avalia os meios gastos para atingir a eficácia?
Começando pela Ave Maria, é fácil verificar que o nosso amigo Carlos foi eficientíssimo, senão vejamos: agarrou numa estrutura musical já existente, e cujo compositor, Bach, já tinha morrido há mais de cem anos e por isso livre de direitos. Alterou-lhe o tom de dó maior para sol maior, coisa que qualquer um com um pouco de conhecimento de matemática pode fazê-lo mesmo não percebendo nada de música, e pôs-lhe em cima uma melodia tão simples que podia ter sido inventada pelo Tony Carreira. Para a letra não arranjou nada mais simples do que pegar num pequeno texto da autoria do arcanjo Gabriel, que por não ter ficha nas finanças não pode cobrar direitos, acrescentado de um outro saído do concílio de Trento, onde de tão preocupados com a reforma e contra-reforma se esqueceram de a registar na sociedade de autores. Simples e barato, cantado em latim para que não se entendesse em parte nenhuma e já está. A harmonia é tocada por um único instrumento, piano ou órgão, cujo intérprete tem a obrigação de saber de cor porque é peça obrigatória no ensino de tecla, e a melodia é cantada por uma única senhora. Caso não haja senhoras disponíveis pode facilmente ser substituída por um homem que esteja disposto a arriscar uma ruptura nas virilhas para atingir o si agudo do in hora, hora, mortis. Mais eficiente e mais barato que isto não há. Três minutos e meio de música é quanto basta para se pôr a solteirona mais fria a procurar consolo nos nossos braços.
Quanto à “Ode à Alegria” é pior que a festa do parque escolar. Para a ouvir é necessário, nada mais, nada menos, do que uma sinfonia em quatro andamentos com um total de uma hora e dez minutos.
Para o soprar, uma secção de dez madeiras e outra de nove metais, e para o barulho, quatro percussões. Para o lirismo, temos as cordas: duas secções de violinos, uma secção de violoncelos e uma secção de contrabaixos. Em cima disto tudo um coro a quatro vozes mas com o naipe dos tenores a desdobrar de vez em quando para que soe a cinco (a única poupança…). Por fim um quarteto de solistas, dois homens e duas mulheres, cujas características principais são a de gritaram o mais alto que puderem. A gerir esta secretaria de estado um maestro que não sofra de artrite. Um desperdício enorme de meios: sala apropriada, fotocópias em barda contribuindo para a destruição da Amazónia, e tempo demais para atingir o objectivo. Para além do mais o coro e os solistas passam a maior parte do tempo sentados e calados.
A música deu um trabalhão dos diabos ao Ludovico que matou a cabeça para descobrir como meter um coral numa sinfonia. Depois a letra: um poema do Schiller, morto há menos de vinte anos, logo com herdeiros a exigir direitos e escrito numa língua que só uma ínfima parte da humanidade consegue perceber e articular. E isto tudo para quê? Para levar mais de cinquenta minutos até atingir a tal eficácia, porque o que a malta quer mesmo é ouvir o tal excerto do quarto andamento.  
A coisa decorre mais ou menos assim: As luzes apagam-se, o palco ilumina-se, e o pessoal compõe-se nas cadeiras, e é o primeiro andamento. Alguém olha para a vizinha do lado com ar entendido e finge ler com muita atenção o programa. No segundo andamento todos acham graça àquele cavalgar da orquestra, e quem é cinéfilo mostra um sorriso maroto ao lembrar-se da Laranja Mecânica, mas não tarda estão a bocejar, e quando chega o terceiro já ponderam se valeu a pena esperar tanto tempo. Finalmente começa o quarto: a orquestra vai ameaçando, dá um cheirinho do tema e a malta fica expectante. A música torna a passear-se pelos temas anteriores, e a malta exaspera. Então os metais e a percussão dão dois acordes estrondosos e a secção grave das cordas começa a entoar o tal tema. Um burburinho corre pela sala, a malta que entretanto se afundara pelas cadeiras abaixo iça o corpo para cima e um ouvinte diz para a esposa: - Agora é que é…- e a mulher resmunga que já não era sem tempo. O coro e os solistas finalmente levantam-se, e quando o baixo berra: - O freunde, sente-se a electricidade no ar. Passado um tempo está tudo aos berros. A contralto a gritar por cima da soprano, só porque é mais alta, e esta a sentir-se vingada por mostrar entre o decote, um peito enorme de fazer inveja; o baixo a pensar - quando é que isto acaba que hoje joga o Benfica, e o tenor a mostrar aquele ar parvo de quem se sente satisfeito por ali estar.
Acaba tudo numa grande gritaria com a percussão a fazer muito barulho, os arcos dos violinos a ameaçar enfiarem-se pelo olho do vizinho do lado, e a contralto a gritar, furiosa por não ter uma medida de copa adequada.
No fim a assistência pula em apoteose gritando bravos, aliviada por aquilo ter finalmente acabado, e a tal esposa, preocupada com a excitação em que vê o marido, vai dizendo, à cautela, que tanta emoção lhe provocou uma enxaqueca.
Enfim, em termos de eficiência um autêntico desastre.
O desastre é de tal modo que o pessoal, para poupar, arranjou maneira de fazer aquilo por menos e é ver os coros a cantarem o tema da “Ode à Alegria” em ritmo de funeral, dispensando a parafernália dos instrumentos, dos solistas, e dos restantes andamentos. Os miúdos da escola sopram em flautas de plástico o mesmo tema e ao mesmo ritmo, e os pais babam-se porque o filho já toca uma sinfonia de Beethoven.
EFICIÊNCIA: Ave Maria de Gounod =10; nona sinfonia = 0
E a qualidade? Bom, a qualidade é muito difícil de aferir. Digamos simplesmente que a Ave Maria não trouxe nada de novo, não teve qualquer influência na história da música, a não ser ensinar como plagiar e ser bem sucedido, enquanto que a nona é considerada a melhor obra da história da música e teve grande influência na maior parte dos compositores do romantismo.
Toda a gente ficou a saber que Beethoven escreveu nove sinfonias e a sonata ao luar, e a fur Elise ouve-se ao telefone quando esperamos que atendam a nossa reclamação. Toda a gente sabe de cor os primeiros acordes da quinta sinfonia e sabe que Beethoven ficou surdo e era alemão.
E Gounod? Alguém sabe a sua nacionalidade? Que obras compôs?
Alguém sabe que, ao contrário de Beethoven que só compôs uma, Gounod escreveu várias óperas com nomes tão sugestivos como por exemplo; “A Freira Sangrenta”? Alguém sabe que é o autor do hino do Vaticano? Que teve uma amante inglesa em pleno período vitoriano? Uma amante vitoriana e inglesa é capaz de adormecer o mais fogoso, e talvez explique o gosto que Gounod adquiriu na velhice pela música religiosa, mas não é razão para desconhecermos o facto!
E os próprios compositores o que pensam daquilo que fizeram?
Gounod detestou saber que só ficou conhecido pela Ave Maria, e chegou a afirmar que nunca escrevera tal coisa. Bach recebeu-o muito mal no Paraíso e dizem até que a zanga entre os dois foi responsável pelo atraso da Primavera. Beethoven, em contrapartida, ficou felicíssimo por ser conhecido pela sua nona sinfonia.
Conclusão: em nome da eficácia e da eficiência, o senhor Camilo Lourenço só admitiria o ensino de Gounod e proibiria Beethoven. Um professor de História acrescentaria que se os persas, na guerra contra os gregos, tivessem sido eficazes e eficientes, talvez nem Gounod nem Beethoven.


quinta-feira, 4 de abril de 2013

O ESPECTÁCULO DO PAPA

 
Aqui há uns tempos, sempre que acedia à internet, a minha homepage informava-me dos passos e dos momentos de um jovem adolescente, ou pré-jovem, nunca cheguei a perceber, que dava, e suponho que ainda dá, pelo nome de Justin Bieber. Seria tontice minha afirmar que desconheço que o rapaz é cantor, mas até hoje não faço a mínima ideia do som da sua voz, do que canta e como canta, mas sei imenso do espectáculo da ficção da sua vida por me entrar pelos olhos dentro.
Há muito tempo que não vejo o Justin Bieber e confesso que me dou muito bem com a ausência não fosse ser agora assaltado com notícias do género:
“O Papa Francisco rezou diante da tumba de João Paulo II nesta terça-feira”, ou “O Papa Francisco foi rezar junto ao túmulo de São Pedro que fica nas escavações da necrópole vaticana”.
Não faço ideia se a ideia da notícia é informar que o Papa reza à terça-feira diante das tumbas ou que existem necrópoles escavadas e ainda por cima vaticanas, mas sei que seria notícia se o Papa Francisco desconhecesse o túmulo de São Pedro, agora rezar?
O cúmulo foi saber, pelos media, que: “na manhã de quinta-feira de Páscoa, o Papa Francisco celebrou missa para os funcionários da Tipografia Vaticana”. Ó meu Deus, o Papa celebra missa???
Eu sei. Eu calo-me. Afinal trata-se do Papa da minha Igreja cuja eleição eu celebrei com tanta esperança neste blogue. Eu sei que vivemos numa sociedade do espectáculo onde a ficção substitui a realidade. Também sei que o Papa não vai ser a favor da ordenação das mulheres porque já foi decidido que não tem esse poder. Que não vai ser a favor do casamento homossexual porque é impossível teologicamente, e que não pode ser a favor do aborto. Mas não lhe resta só o exercício do espectáculo como se fosse uma pop star.
Se não há ideias no Vaticano para popularizar o Papa eu posso adiantar uma: reciclar a encíclica Humanae vitae. Já lá vão 45 anos e pouco faltou para Paulo VI autorizar a pílula. Que tal, Papa Francisco? Não era uma boa publicidade contra o aborto?
“Papa fura protocolo e assina gesso em perna partida”. SOCORRO, o Papa é o Justin Bieber!