domingo, 14 de julho de 2013

CARRASCOS, CAPANGAS E A BASTILHA

"Querer-se livre é também querer livres os outros."
Simone de Beauvoir
 
Uma das tácticas dos inimigos da democracia é a criação de manobras de diversão sob a capa da justa reivindicação de direitos: junta-se um grupo ruidoso, a maior parte das vezes com razões para protestar, ganhando com isso a simpatia do público em geral, e organiza-se uma manifestação de forma a impedir o livre exercício das regras democráticas. Com alguma sorte esse grupo sofre qualquer tipo de retaliação ou insulto transformando-o rapidamente de revoltoso em vítima. A empatia fica então assegurada e é ver os media e as redes sociais a fazerem coro com o protesto, conseguindo-se assim o que não se consegue pelo voto. Denunciar este esquema torna-se perigoso pois faz centrar sobre quem o denuncia a fúria de quem tomou o partido das supostas vítimas. Evitando cair nessa armadilha, assumo o papel de ovelha tresmalhada como meio de preservar o meu sentido crítico. Não para qualquer tipo de publicidade ou tomada de posição em favor deste ou daquele partido. Se alguma pretensão política pudesse ter seria sempre em defesa da liberdade e da democracia, mesmo que por causa dela o meu voto não seja o que vence.
Simone de Beauvoir, com o espírito livre e superior que se lhe reconhece, disse um dia que não podíamos ter medo. Nesse sentido, quando os nazis ocuparam a França, afirmou que não se podia permitir que os nossos carrascos nos criem maus costumes. Beauvoir é grande demais para ousar interpretá-la mas não errarei se disser que com carrascos se referia aos nazis, inimigos da liberdade e da democracia, e com maus costumes se referia ao medo por eles causado.
Falando em Simone de Beauvoir, em liberdade e em democracia, vem-me à lembrança o dia de hoje, 14 de Julho, dia da tomada da bastilha que serve de símbolo à revolução francesa. A tomada de uma fortaleza onde se prendiam os que discordavam do poder absolutista e autocrático é sempre um símbolo forte, mas sucedeu devido a um equívoco: um falso rumor criado para obter a fúria das massas. Apesar de não ter sido nem a causa nem o início dessa revolução a França celebra o dia com pomposa parada militar, não se lhe conhecendo contudo feitos guerreiros desde Napoleão que justifiquem tal pesporrência. Mau sinal celebrar-se a liberdade com o brilho das baionetas.
A revolução francesa, acontecimento por demais importante na história da humanidade, está cheia de equívocos. Desde logo porque se inicia com aqueles que mais tarde irão sofrer no pescoço os seus efeitos. Os nobres, descontentes com a acção do rei em querer redistribuir a enorme riqueza que a França da altura produzia (estava longe de ser um país arruinado como por vezes se pensa), encostaram-se à burguesia para juntos acabarem com o regime absolutista e decidirem eles o valor dos impostos. Sem o saberem assinavam a sua sentença de morte, porque isto de revoluções sabe-se como começam mas não como acabam. Com a revolução acabou a distinção medieval entre povo, clero e nobreza: todos passaram a ser cidadãos com iguais direitos e deveres.
Se à revolução devemos muito da nossa liberdade e democracia, convém não esquecer que o caminho foi trilhado muitas vezes sobre o “Terror”. Outro dos equívocos, por exemplo, foi a condenação de Lavoisier cujos feitos são bem mais dignos do orgulho francês do que as evoluções no campo de batalha. O pai da química moderna foi guilhotinado no período conhecido pelo “Terror” que se seguiu àqueles actos revolucionários, após julgamento sumário um dia antes da execução. O seu crime: ter sido, durante algum tempo, cobrador de impostos. Num segundo caiu uma cabeça que um século não seria suficiente para produzir, como afirmou Lagrange, outro grande homem das ciências. Pelos equívocos que geram o Terror, o carrasco decapitou um rei bom, mas não democrata, que quis tirar aos nobres para dar ao povo, e um cientista que para ganhar a vida se viu obrigado a cobrar impostos. Os carrascos nem sempre são os culpados mas são sempre a mão visível de quem devia carregar a culpa.
Carrascos da democracia há muitos e por isso todo o cuidado é pouco. Desde logo os que pretendem pôr em causa os direitos à educação, à saúde e ao trabalho que foram conquistados pela democracia que temos, centrada numa assembleia parlamentar e legislativa onde se sentam os representantes do povo, que é o conjunto dos eleitores. Nas suas galerias podem assistir eleitores que não representam ninguém a não ser eles próprios. É assim dentro das regras democráticas e não é subvertendo-as que podemos lutar contra os que põem em perigo a democracia, inclusive substituir os governos que julgamos carrascos dos nossos direitos. Calar o parlamento é acabar com essa possibilidade. Sempre que se subverteram as regras democráticas, mesmo em nome das boas intenções, resultou invariavelmente em fascismo e ditadura.
O que distingue a democracia de um totalitarismo, não é a legitimidade garantida pelo número dos apoiantes. Mussolini, pai do fascismo, tinha o apoio da larga maioria dos italianos, tudo assim o indica, e era bem visto e admirado pelas potências europeias e americanas antes da guerra. Essa legitimidade baseada pelo apoio das massas também é tirania. Em democracia, para que a vontade da maioria não seja tirânica, existem mecanismos que garantem os direitos da minoria, desde logo a liberdade de expressão e opinião. Ouvir uma dirigente sindical, militante de um partido com assento na assembleia, dizer que o parlamento podia fechar porque não fazia falta nenhuma, é o mesmo que ouvir um insulto à democracia. Ao dizê-lo aproxima-se das teses dos fascistas que foram e são autênticos carrascos da democracia.
Um grupo de pessoas que decida invadir as galerias da assembleia para impedir o seu livre exercício tem como intuito causar medo aos representantes do povo. Se esse grupo é liderado por quem afirma querer interromper a democracia, confunde-se perigosamente com os inimigos da liberdade. Em democracia as pessoas são iguais e o povo é o conjunto dos eleitores. Ninguém tem o direito de julgar saber a opinião do povo sem que este a expresse nas urnas.
         Como dizia Sartre, somos todos individualmente responsáveis pelos crimes que colectivamente se fazem. Quem não quer ser carrasco não lhe vista a pele.
* CAPANGAS - Termo com que Mário Soares brindou um grupo de eleitores que se manifestou em público, no lugar errado à hora errada.

Imagem: bandeira da Hungria com buraco donde se retiraram os símbolos da ditadura e do invasor em 1956




Sem comentários:

Enviar um comentário