quarta-feira, 30 de abril de 2014

SÃO OS TRABALHADORES QUEM TOCA A MÚSICA NO BAILE DOS PODEROSOS

         Uma das minhas óperas preferidas, e a que mais vezes repeti, é “As Bodas de Fígaro” de Mozart. Por duas vezes a ouvi em S. Carlos e em Praga, cidade amada por Mozart, tornaria a assistir à crítica dos costumes e dos abusos da classe dirigente à época de Mozart que este tão bem denunciou com a sua música.
 
Por uma feliz coincidência, o 1º de Maio de 1786 foi a data escolhida para Mozart dirigir a estreia daquela sua ópera, no Burgtheater de Viena. Antecipando a comemoração do dia do trabalhador, Mozart punha Fígaro, o criado do conde de Almaviva, a cantar em frente de toda a nobreza do império austríaco uma cavatina que, referindo-se ao seu patrão que cortejava Susana, a sua jovem noiva, dizia coisas como: “Se quiseres bailar, senhor condezinho, a guitarra tocarei. Se quiseres, vem à minha escola que te ensinarei como dar cabriolas…”. O responsável do teatro onde tal despautério se ouvia era, nem mais nem menos, o próprio imperador José II.
 
Mozart, talvez encorajado pelas políticas liberais do imperador que abolira a servidão, e três anos antes da revolução francesa que faria rolar a cabeça da irmã deste soberano, criticava jocosamente a forma como os nobres abusavam das jovens criadas e exploravam o trabalho do povo, lembrando-lhes que os poderosos podem acabar a bailar conforme a música tocada pelos humildes.
 
Neste primeiro de Maio, tal como Fígaro, todos temos uma “guitarra”. Esperar que outros a venham tocar com promessas de fazer melhor, terá unicamente como resultado acabarmos a bailar ao som do que tocam os outros.
 
É a nossa forma de tocar que determinará como bailarão os que detém o poder, político ou económico. Saibamos apanhar o tom e o acorde convenientes.
 
 


quarta-feira, 23 de abril de 2014

PARA CELEBRAR O 25 DE ABRIL FAÇA-SE UMA FESTA


Uma das coisas que o 25 de Abril não conseguiu expurgar foram as pechas do sebastianismo e do “respeitinho”.
Percebe-se claramente quando, 40 anos passados, vemos gente tristonha dizer que não foi para isto que fizeram o 25 de Abril e esperar embevecida por um qualquer militar armado em D. Sebastião, como se não tivesse sido aquele rei doido e adolescente quem nos levou à desgraça. Pois eu digo alto e bom som: Foi bom que se fizesse o 25 de Abril.
É que eu não me esqueci de que antes havia uma ditadura, a censura e a falta de liberdade… e o “respeitinho”. Hoje temos uma democracia representativa, a única democracia que reconheço, suficientemente adulta para não precisar da tutela de ninguém. Se não estamos como gostaríamos de estar a culpa é essencialmente da nossa falta de exigência para com os políticos que elegemos. Mas eles, os políticos, são quem nos representam e têm todos os defeitos e virtudes que a generalidade do povo português. Se não gostamos do que vemos no espelho de nada serve parti-lo. Tenhamos a coragem de nos tornar menos egoístas e mais altruístas como o foram os militares de Abril, exigentes connosco e com os outros, e talvez tenhamos uma sociedade mais justa e equitativa. Aguardar por um qualquer D. Sebastião resulta invariavelmente em ditadura e nenhuma, seja lá a cor, é boa.
Dizem que muitos não eram nascidos no 25 de Abril e por isso têm de respeitar a quem devem a liberdade. Pois eu digo que adultos com 40 anos têm idade suficiente para não precisarem de tutores nem de “respeitinho”.
O facto é que não devemos a liberdade a ninguém. A Liberdade é um direito dos Povos. Um dia foi-nos roubada por militares que, através de uma ditadura militar, entregaram o país a Salazar. Durante 48 anos os militares foram o suporte dessa ditadura.
Se a 25 de Abril, alguns militares cheios de coragem, jogando com a sua própria vida e carreiras, decidiram reparar o erro e devolver a Liberdade ao Povo, fizeram um gesto que os engradece e deixa nas nossas memórias a mais viva e grata das recordações. Sentirem-se credores é corromper o gesto. Assumirem-se como tutores dessa liberdade é negarem o 25 de Abril.
Celebremos então com alegria o 25 de Abril, porque temos a liberdade de escolher, em democracia, quem nos deve representar na discussão das Leis da República. Para a festa, contudo, não precisamos de representantes, nem a Assembleia, um lugar de debate parlamentar, deve servir para sessões solenes. Sessões solenes são como as missas de sétimo dia. As celebrações fazem-se em festa, na rua, que o Povo não precisa de quem o represente para festejar.
Faça-se então a festa na rua, que é onde está o Povo. E por favor! Nada de discursos (bocejo). Nem em São Bento nem no Carmo. Encham o Rossio, o Terreiro do Paço, de mesas e de bancos. Tragam os farnéis, que corra a cerveja dos barris e o vinho das pipas, e cante-se. Numa celebração da morte do “respeitinho”, cante-se e dance-se até ser madrugada.



sábado, 19 de abril de 2014

REFLEXÕES PASCAIS

 
            (leituras: Act 10,34a.37-43
Sl 118 (117)
Col 3,1-4
Jo 20,1-9)
 
Amor, puro Amor, capaz de sublimar a matéria libertando-nos da nossa finitude.
Ressurreição, onde o corpo se transforma por acção do Amor.
Um corpo que se transforma por acção do espírito vivo que nele habita. Entregando-se por completo aos outros, liberta-se.



sexta-feira, 18 de abril de 2014

PAIXÃO




Erbarme dich,
Mein Gott, um meiner Zähren willen!
Schaue hier,
Herz und Auge weint vor dir
bitterlich.
 
Tem piedade de mim,
meu Deus, vê as minhas lágrimas!
Olha,
O coração e os olhos que choram por vós
amargamente.
 
ERBARME DICH, da Paixão de São Mateus de J.S.Bach
 

terça-feira, 15 de abril de 2014

NO PAÍS DO SEI LÁ, ou para que servem as bibliotecas

 

Num programa de perguntas e respostas da televisão, uma jovem formada em gestão não conseguiu responder à pergunta sobre quem tinha escrito a célebre obra “A riqueza das Nações”. Não gostava de economia, disse em sua defesa. Temos assim o caso peculiar de uma gestora que detesta economia.

De facto, gostar de economia implica ler, uma maçada. Já a gestão, bastam duas colunas para o deve e o haver.

Depois ler faz pensar, outra maçada. E é preciso bibliotecas que ficam vazias, porque o hábito necessita de uma, duas ou mais gerações, tal e qual um campo semeado que precisa de quatro estações antes da ceifa, e gasta-se muito dinheiro enquanto não se vêm os resultados. Mas se não semear não haverá ceifa.

Pensar para quê? O que é preciso é fazer coisas, como a gestão. A mão de obra fica barata e assim os investidores dos países com bibliotecas vêm cá abrir as suas fábricas e dar emprego a toda a gente.

Tão simples como isso: os que têm bibliotecas fazem as fábricas, os outros sujeitam-se ao ordenado que lhes quiserem pagar. É tudo uma questão de gestão e escusamos de cansar a vista lendo o que escreveram o Locke, o Adam, a Rosa e o Marx. Economia? Uma maçada. É preferível continuarmos a viver no país do “Sei Lá”.

Um dos países que tem muitas bibliotecas é a Alemanha. Um dos seus reis, Frederico II da Prússia, era um amante das artes, da música, e dos livros e sabia falar português. Transformou a Alemanha numa das maiores potências da Europa. Uma maçada!

Estamos assim no país do “Sei Lá”, um livro e um filme de sucesso. Uma visão do mundo de quem não gosta de maçadas, que fala das relações dos homens com as mulheres, assim de uma maneira mais gira e mais sei lá, do que o Homero. Uma questão de gosto, dizem. É dinheiro a entrar em caixa rapidamente: uma alegria para os gestores “sei lá”.

Mas Homero é como o trigo: tem semente. Por isso a cultura vem de cultivar. Exige esforço e dedicação, até que se produza e se consiga transformar o meio onde vivemos. Satisfazer pelo gosto pode engordar mas não ensina a mudar.

O senhor da foto que lê um livro? De calças rasgadas e o cão ao colo, mais preocupado como o ser do que o ter? Theodore Roosevelt. Um dos grandes presidentes dos EUA, com direito a ter a efígie gravada na pedra do monte de Rushmore. Outra maçada!

Antes que fechem as bibliotecas vazias, corram a saber quem foi que escreveu o tal livro “A riqueza das Nações” e depois continuem alegremente vivendo no país do “Sei Lá”.

 

Foto roubada daqui: http://punditfromanotherplanet.com/2013/11/03/paradox-of-the-book-the-chaos-of-the-internet-makes-reading-easier/



sexta-feira, 11 de abril de 2014

REFLEXÕES QUARESMAIS VI

 
            (leituras: 1 Is 50,4-7
Sl 22 (21)
Fl 2,6-11
Mt 26,14-27,66)
 
Vendemo-lo por trinta dinheiros, e repetidamente o negamos.
Humilhou-se e calou-se. Não respondeu às acusações que lhe faziam.
Esperava talvez pelo testemunho dos amigos de Lázaro.
Ou o de Jairo, a quem salvou a filha.
Talvez que o paralítico de Cafarnaum corresse agora em seu auxílio!
E Pedro, que fora tão lesto com a espada? Porque se acobardava ele entre os servos no pátio?
 
 Ofereceu-se em holocausto por nós, mas em vez dele escolhemos o assassino lavando as mãos.
 
O que sinto eu quanto canta o galo?
Ouvirei o seu grito de auxílio? Um grito que diz para não seguir o seu exemplo de humilhação e de silêncio, mas que me levante para o afirmar e gritar pela justiça que lhe negaram, oferecendo a vida pelos outros, se preciso for?
Ou continuo a negá-lo?
 
É que sempre é mais barato na loja, quando esquecemos o sofrimento de quem produz a baixo custo.



sexta-feira, 4 de abril de 2014

REFLEXÕES QUARESMAIS V


(leituras: Ez 37,12-14
Sl 130 (129)
Rom 8,8-11
Jo 11,1-45))
 

O evangelista João, no episódio da morte e ressurreição de Lázaro interpela-nos. Em que queremos acreditar? Num morto que se torna vivo, ou num morto que está vivo?
Orfeu desceu ao reino dos mortos para trazer Eurídice, a mulher amada. Chorou para enternecer Hades e conseguiu-o. Uma condição apenas: que não olhasse para trás, para a mulher, enquanto não chegassem ao campo aberto ao Sol. Orfeu não resistiu e perdeu a mulher pela segunda vez. Somos como Orfeu os que queremos ver neste episódio relatado por João, um Lázaro a voltar à vida material.
O Mestre, como Orfeu, chorou de saudade pelo amigo morto. Porque se chora a partida de um amigo, não a sua chegada!
Depois diz João que Ele mandou retirar a pedra e que o morto saiu. Como relata João, saiu morto, não vivo. Depois o Mestre disse: Desligai-o e deixai-o ir.
João não pôs na boca do Mestre o que ele não disse nem fez: que o deixassem ficar. Apesar de amigo não o quis para si, como Orfeu. Os amigos, como nós, diziam-lhe com a boca o que o coração não acreditava: que os mortos viveriam. Por isso o Mestre disse que o deixassem ir, não que o deixassem ficar.
É preciso deixar que os mortos partam para que possam viver.
E então o milagre? Acaso pretendo cair em apostasia, blasfémia ou heresia?
Uns dizem que Lázaro não chegou a morrer. Jesus, grande curandeiro, tirou-o da letargia. Outros, a tese mais “oficial”, que não, estava morto e ficou vivo. Vivo biologicamente. Grande milagre de facto, mas e a esperança?
A esperança não pode residir num morto que se torna vivo (seria o triunfo da carne e da morte), mas num morto que está vivo, gritando que a morte não existe. Tirai a pedra dos vossos corações, desligai as faixas, para que o espírito permaneça vivo por causa da justiça, como dizem as leituras.
O milagre não o nego. Todos os que estavam presentes naquele dia puderam ver um morto sair de um buraco escuro e fundo, desligar-se e partir em direcção da Luz.