sexta-feira, 12 de setembro de 2014

NAS TARDES SERENAS DO OUTONO FAZ-SE MARMELADA

 

Em chegando o Outono sabe bem o aconchego dos marmelos e digam o que disserem a única, a verdadeira, a mais gostosa, é a marmelada de Odivelas. Já o sabia D. Dinis que gostava de rumar àqueles outeiros por a achar melhor que a feita por Dona Isabel que lhe dizia: Ide vê-las, senhor, ide vê-las – referindo-se às moças que a faziam tão bem feita. Por causa disso ficou o sítio conhecido por Odivelas, deturpação do povo às palavras da santa rainha e ainda hoje, para quem vem de Lisboa, é forçoso que passe pela estrada do Lumiar que a bondosa esposa do rei poeta mandava alumiar para que não se perdesse. Tudo são estórias mas o certo é que o fogoso rei ali se fez sepultar, vá-se lá saber porquê.

O que tem a ver Odivelas com as Caldas, perguntam-me, para me pôr aqui a tecer loas à sua marmelada? Pois foi aqui, nas santas águas das termas, que se tratou D. João V dos excessos de tanta marmelada comida das mãos de madre Paula, abadessa generosa do mosteiro de Odivelas que o rei, quando príncipe, visitava amiúde. E é por isso que aqui vos darei o privilégio de conhecer a única e verdadeira receita da marmelada tal como a contou a última freira do mosteiro, extinto pelo mata-frades Joaquim António de Aguiar que preferia o caldeiro dos militares aos marmelos das noviças. Deitemos então a mão aos marmelos.

Estava uma tarde doce e suave de Outono quando madre Paula disse ao príncipe: - Joãozinho quinto, vamos fazer marmelada? - O que fez o príncipe dar um salto para se atirar de pronto aos marmelos. Mas madre Paula fê-lo recuar pois isto de marmelos tem preceito. Que não eram como aquelas gamboas enormes da corte, que mais pareciam de silicone e já maduras. E madre Paula mostrava-lhe a suave penugem que cobre a pele dos verdadeiros marmelos, ainda um pouco verdes.

É doloroso relatar o que se viu, mas obriga-me a honestidade a fazê-lo: os queixais do príncipe quedaram-se tombados até ao peito, e a baba que lhe aparecia na comissura dos lábios era um espectáculo triste de se ver num futuro rei.

Madre Paula ensinou-lhe então a desbrugar os marmelos e a pô-los logo em água fria para arrefecer ardores não fosse o entusiasmo ir longe demais antes do tempo certo. Só depois de descascadinhos e limpos de caroços se coziam então em lume sempre brando que isto de preliminares quanto mais devagar melhor.

Depois de bem cozidos, teve então o príncipe autorização para amassar tudo muito bem, podendo usar a colher de pau e a peneira. O leitor fica autorizado ao passe-vite e à varinha mágica, ao chicote, cinto de ligas e salto agulha, e todo o catálogo de BDSM, desde que fique tudo muito bem amassado que agora é a loucura total. E mais não escrevo que o pudor tolhe-me a pena.

Acalmados então os ânimos, começam as doçuras. Para cada quilo de massa pôs madre Paula dois quilos de açúcar, que isto de reis e conventos é outra coisa e o príncipe era generoso. Um exagero, dir-me-ão, mas era assim no tempo de D. João V, quando ainda tínhamos os brasis e por isso saía a marmelada branquinha ao gosto da época. Porquê pôr um quando se podem pôr dois, foi sempre o mote do príncipe como se viu nos dois carrilhões de Mafra que é hoje causa de diabetes no orçamento da cultura. Hoje, com a moda dos bronzeados, admite-se doçura igual à badalhoquice da amassadura, cortando-se o açúcar quase pela metade, ficando a marmelada assim a modos que mais afogueada.

E agora é que é preciso paciência, caro leitor, mas a marmelada ou é feita como deve ser, ou então contente-se com uma rapidinha ao supermercado para a compra da compota.

Prepara-se um banho de doçura, na proporção de 2.5 dl de água por cada quilo de açúcar e levanta-se fervura até atingir o ponto de rebuçado. E aqui terá o leitor de estar atento que o açúcar, como as mulheres, é enganador. Pensando que está tudo no ponto, arrisca-se a uma recusa que azeda a marmelada. Saberá que o ponto foi atingido quando, no meio dos gemidos da canseira, deitar uma bola da pasta do açúcar numa pinga de água fria e aquela coalhar.

Agora pare um pouco, tire do lume e junte ao açúcar a massa bem desfeita com a colher e mexa, mexa muito bem. Volta então ao lume até levantar ampolas, mas sem magoar e sem queimar. Nesse momento pode então apagar a chama do lume mas continue a bater, a bater, até esfriar.

Gostava a madre Paula, depois de esfriar, de deitar a marmelada assim feita em pratos rasos para que secasse, deixando o açúcar cristalizar como ao amor de Stendhal. Isto porque o príncipe porcalhão gostava de a cortar em cubinhos e comê-la à mão. Nós que somos civilizados, deitamo-la em taças e servimos a barrar o pão.

Não esqueça: nada de gamboas, mas marmelos ainda verdes com penugem agradável ao tacto. Depois, muita paciência e doçura. Se os marmelos forem já maduros, não desanime, porque então já a vontade de comer vai dispensando alguma da doçura e sempre pode aventurar-se a uma tarte ou mesmo um strudel. No fim reze uma Ave Maria e um Padre Nosso pelas almas da madre Paula e de D. João V, para que não digam que somos mal agradecidos.

Aos mais jovens, se não sabem o que são marmelos e não perceberam nada da receita, perguntem aos avós. E treinem, que o saber nasce da experiência.



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