quinta-feira, 29 de setembro de 2016

A ANTENA DOIS E A INVENÇÃO DO PRESERVATIVO COM TROMPAS DE FALÓPIO À MISTURA


A Igreja católica tem a função ingrata de fazer recair sobre si a culpa da maior parte da estupidez dos homens, como se fosse ela a causadora dessa estupidez e não dos homens que carregam tal qualidade.
Num programa de rádio (antena dois) ouvi um senhor, que não fixei o nome, falar sobre Gabriele Fallopio, e como este famoso anatomista do século XVII descreveu o aparelho reprodutor masculino e feminino, ficando para sempre conhecido pela sua descrição das trompas de Falópio. Dizia o senhor, perante a admiração bacoca do locutor, que o senhor Fallopio muito sofreu para fazer os estudos de anatomia devido à proibição que a Igreja impunha sobre a dissecação dos cadáveres. Acrescentou depois que, não obstante, o Sr. Fallopio descobriu o clítoris e o orgasmo feminino, enquanto o locutor ejaculava ahs de admiração e espanto.
Não digo que algum clero mais retrógrado não se opusesse à dissecação dos cadáveres. Ainda hoje tal prática repugna os mais sensíveis, e na Grécia antiga, sempre tão liberal, tal prática era proibida, tal como na Roma pagã, enquanto no Egipto se fazia à tripa forra. O estudo da anatomia em corpos é muito mais antigo que o Sr. Fallopio e as suas trompas. Se a Igreja proibia não sei, mas sei que Mondino de Luzzi realizou dissecações públicas no início do século XIV, trezentos anos antes das descobertas de Fallopio, em Bolonha, mesmo nas barbas do Papa. E sei que Frederico II, imperador da Alemanha e das Sicílias, em princípios do mesmo século XIV, obrigou a que os futuros médicos estudassem anatomia em cadáveres humanos e que tal prática já era feita no século anterior, também em Itália, à sombra da Igreja católica. Que Fallopio tenha tido problemas com alguns sectores da Igreja, do clero e da opinião pública sobre o uso de cadáveres, acredito que sim, mas não é rigoroso, e estamos no campo da ciência em que o rigor é essencial, que afirmem que havia uma proibição da Igreja.
E depois o gozo feminino que o senhor diz ser descoberta do Fallopio. E eu sou obrigado a chamar em socorro a minha querida monja do século XII, Hildegard de Bingen, que, entre outras coisas, descreveu tão bem e tão poeticamente, esse orgasmo feminino que ela tão bem conhecia, vá-se lá saber porquê. E não era em segredo que o murmurava, mas em livros abençoados pelo alto clero da Igreja católica que se curvava à sabedoria feminina de Hildegard.
E o clítoris, senhores? Uma descoberta da ciência renascentista europeia?! Na altura em que iniciávamos a colonização do mundo e que nos abismávamos com o conhecimento que tantos “médicos” tradicionais africanos tinham do botãozinho prazeroso que até o excisavam, desde a mais antiga antiguidade, passe o pleonasmo. Aproveito para afirmar que não, não se trata de uma prática islâmica. Como é que estes “selvagens” cortavam o dito coiso se o Sr. Fallopio ainda o não tinha descoberto?
Tenho uma grande admiração pelo conhecimento e cultura europeia, mas não exageremos. E nem a Renascença foi um descobrimento, mas antes o galopar de um cavalo que até aí, durante toda a Idade Média, trotara com garbo ensaiando por vezes esse galopar renascentista muito antes do século XV.
Lembrem-se que nem a pólvora descobrimos!
E agora uma fofoquice, daquelas picantes. Já ouviram falar na nossa princesa Catarina de Bragança que deu o chá a beber aos ingleses?! Pois a senhora, para nossa salvação, casou com o rei Carlos II de Inglaterra. O moço, para além da rainha portuguesa, tinha muitas amantes e um medo de morte da sífilis, mal que foi “descoberto” pelos navegadores quando chegaram à América. Vai daí o conde de Condom (perceberam a piada? É o nome que os ingleses dão às camisinhas!), entregou ao rei uma “luva” oleada e feita com intestino de carneiro, coisa aprendida com o italiano Fallopio. E por que vos falo destas histórias de alcova? Porque o tal senhor da Antena dois, causando ainda maior espanto ao locutor, afirmou que o sr. Fallopio também tinha inventado a camisinha. Ora o que o Fallopio, coitado, fez, foi prescrever a camisinha, que já os egípcios usavam para a contracepção, para defesa contra as doenças venéreas, principalmente essa “filoxera” que vinha da América e que dava pelo nome de sífilis.
É que o Fallopio não descobriu nem inventou coisa alguma. Limitou-se a descrever o funcionamento daquilo que já se sabia desde o tempo em que o Moisés rogou as sete pragas contra o Egipto. Em abono do Fallopio, devo dizer que ele descreveu muito bem as tais trompas e descobriu que não senhor, os cavalheiros não penetravam o útero. Passaram as damas a dormir muito mais descansadas desde então, menos o tal conde de Condom que não achou piada nenhuma por ver associado o nome da família a tal peça intestinal.
       Não se sabe, nem o tal senhor da Antena dois disse, sobre o que pensava o Papa a propósito da “invenção” para cavalheiros do Sr. Fallopio.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

ALICE


Nasceste hoje, mas não te vimos, a não ser nas fotografias que o teu pai nos mostrou. Porque não sei escrever poemas, deixo-te este de Antero de Quental, porquenão quero imperar nem já ser rei, senão tendo meus reinos em teu seio, e súbditos, criança, em teus bonecos!”
À minha neta, Alice.

Pequenina

 Eu bem sei que te chamam pequenina
 E ténue como o véu solto na dança,
 Que és no juízo apenas a criança,
 Pouco mais, nos vestidos, que a menina...

 Que és o regato de água mansa e fina,
 A folhinha do til que se balança,
 O peito que em correndo logo cansa,
 A fronte que ao sofrer logo se inclina...

 Mas, filha, lá nos montes onde andei,
 Tanto me enchi de angústia e de receio
 Ouvindo do infinito os fundos ecos,

 Que não quero imperar nem já ser rei
 Senão tendo meus reinos em teu seio
 E súbditos, criança, em teus bonecos!

Antero de Quental, in "Sonetos"

domingo, 18 de setembro de 2016

NEM ÓPERA NEM FADO


Um jornalista vasculha a vida sexual dos outros, enquanto um ex-primeiro ministro lhe apresenta o livro que não leu. O país ouve um coro de protestos. Que é o abrir de uma caixa de Pandora, diz outro jornalista, desmemoriado, esquecendo-se que há tempos, outra jornalista, resolveu retirar do armário os esqueletos de pessoas já falecidas. É claro que a jornalista é de esquerda e os esqueletos de direita, pelo que tudo se perdoa e se esquece. Agora o jornalista parece ser de direita e os esqueletos vão da direita à esquerda, passando pelo centro. Que se vendam muitos livros para benefício da receita fiscal, agora que os políticos andam a dizer que é preciso tirar dinheiro a quem poupa, quando deveriam dizer que é preciso tirar dinheiro a quem o ganha com o suor do rosto dos outros.
Jorge Jesus recusa calar-se e vai dizendo que futebol não é ópera nem fado, onde o silêncio é obrigatório. Grita Jesus, que o mal está no pouco gritar.
E quando andamos assim distraídos, não é que um garoto de 14 anos, em Calais, resolveu tentar saltar para cima de um camião que rumava ao ferry para Inglaterra?! O irmão vive lá e isso dava-lhe o direito de para lá ir sem acrobacias. Cansou-se de esperar, que as burocracias não são só cá. Quem é que gosta de esperar quando se tem 14 anos? Caiu na auto estrada, foi atropelado e morreu. Era do Afeganistão, terra de gente feroz que em tempos jogava polo a cavalo, com a cabeça dos inimigos, no meio de muita gritaria que lá não há ópera nem fado.
Um dia se escreverá um livro, um fado e uma ópera sobre o assunto. Entretanto constrói-se um muro que é para que mais miúdos não se atrevam a ter pressa. E choraremos quando o pano cair, para não termos de perguntar por quem os sinos dobram, porque temos medo da resposta que já conhecemos.
Porque tudo é espectáculo a que assistimos impávidos e serenos. Devíamos fazer como Jesus e gritar com os árbitros, com os jornalistas, com os políticos, com todos, até que percebam que isto não é nem ópera nem fado.

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

CANÇÕES DE EMBALAR

Uma das mais antigas e interessantes tradições musicais é a canção de embalar. Lullaby ou cradle song em inglês, berceuse em francês ou wiegenlied em alemão. A sua função principal é adormecer os bebés, mas servem também para passar a tradição e a cultura, e sobretudo reforçar os laços entre mãe e filho, no pressuposto que devem ser as mães a embalar os filhos ao som de uma canção, mas os pais podem fazê-lo. Eu cantava para os meus filhos a ária da Madame Butterfly, “Un bel di vedremo”. Um baixo tentando cantar árias de soprano…! Só o psicanalista poderá avaliar os estragos causados.
Tem reconhecido valor terapêutico. Devem ser melodias simples, com intervalos consoantes uma vez que se provou que os bebés perdem o interesse com as dissonâncias. A preferência vai também para canções sem qualquer acompanhamento musical, pois o bebé fixa-se melhor no som da articulação das palavras.
Tive a sorte de ouvir muitas vezes a minha mãe cantar-me canções de embalar. Era sempre a mesma, em inglês, “rock-a-by baby”. Até hoje não faço a mínima ideia da letra (já a achei na internet). A minha avó, que era inglesa, cantava em português a canção brasileira: “Encosta a tua cabecinha ao meu ombro e chora”, e nós adorávamos, mas já éramos granditos para embalos ao peito.
Hoje já não se canta em casa, junto ao berço ou no trabalho e é uma pena. Põe-se os phones nos ouvidos ligados ao telemóvel, e adiante. Há tanto curso para futuros pais, mas nenhum que os ensine a cantarem canções de embalar aos filhos. Devia ser obrigatório. Nenhuma criança devia sair da maternidade sem que os pais fizessem prova de canto! À atenção dos senhores governantes.

Uma das canções de embalar mais famosa é o wiegenlied de Johannes Brahms, que aqui deixo como inspiração para os futuros pai e mãe da família. Para estar em linha com a modernidade da igualdade de género e das famílias alternativas, a versão é cantada por dois homens. O importante é que cantem para os vossos filhos.